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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Os problemas da TACE ao explicar a crise de 2008.

Christopher A. Ferrara*

Os austríacos afirmam que a crise de 2008 inaugurada pela falência do Lehmann Brothers teria sido única e exclusivamente culpa do governo. A tese implícita nesta afirmativa seria a de que num mercado verdadeiramente livre, não haveriam crises como a que devastou a economia americana em 2008. Mas no que eles fundamentam essa ideia? Os austríacos fundamentam seu argumento na TACE – Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos. Em que pese ela tenha tido algumas versões ligeiramente distintas na visão de alguns economistas mais destacados desta escola, a versão mais popular e utilizada para explicar a crise de 2008 é a versão apresentada por Friedrich Auguste von Hayek, vencedor do prêmio Nobel de economia de 1974 (Os austríacos geralmente se esquecem, entretanto, que o prêmio foi dividido com o keynesiano Gunnar Myrdal para que não houvessem choques ideológicos).
A teoria austríaca dos ciclos econômicos” – diz Thomas Woods – “exonera da culpa o livre-mercado pelo ciclo de boom-bustque terminou no derretimento da economia americana. Exonera! Not guilty, your honor! De acordo com a TACE, o FED (Ajudado por Freddie Mac e Fanny Mae) causaram a crise quando artificialmente baixaram a taxa de juros no início dos anos 2000, fazendo com que fossem atirados “enorme quantidade de recursos na construção e produção de casas” de acordo com Woods. Isto teria criado uma superprodução e criando a “bolha imobiliária” a qual o estouro subsequente levou ao declínio generalizado dos preços a partir de 2006. A afirmação austríaca é obviamente falsa do ponto de vista lógico e factual.
  • Logicamente é falsa, porque o argumento causal austríaco elimina o livre arbítrio da conta moral dos atores econômicos que participaram da crise, levando-nos a falácia de correlação coincidente. Ex: Se o rifle não fosse dado de presente a Smith, ele não teria se matado[1]. Logo, o rifle é “a causa” da morte de Smith. De modo análogo no raciocínio austríaco, taxas de juros artificialmente baixas geram maus investimentos sem qualquer intervenção da vontade humana, como se a prudência e a aversão a riscos deterministicamente[2] caíssem e subissem na mesma proporção da taxa de juros. Ou ainda, como se investidores fossem incapazes de ver o que os economistas austríacos viram; embora se deva fazer notar, como um piadista certa vez notou, de que os austríacos previram 11 das últimas 4 crises[3].
  • Factualmente, a afirmação é falsa porque a crise de 2008 foi muito mais do que uma simples “bolha imobiliária” criada por uma super-oferta de casas. Ela foi, na verdade, uma grande bolha de crédito que não envolveu maus investimentos na construção de casas, mas ao contrário disso uma pandemia de gastos e empréstimos sem qualquer garantia, na forma de riscos primários, secundários e hipotecas ajustáveis em linhas de crédito para construção de casas financiando casas novas e antigas além de dívidas de cartão de crédito para propósitos outros que não o investimento em capital, tais como férias, quinquilharias e outros luxos.
Aqui os austríacos borram a distinção entre duas taxas de curto prazo fixadas pelo FED para empréstimos bancários – a taxa de fundos federais e a taxa de desconto - com a taxa de juros de longo-prazo que é estável para uma hipoteca fixa com prazo de 20 ou 30 anos. A taxa de juros do Federal Reserve NÃO determinam as taxas de juros sobre hipotecas, que são muito maiores e não têm correlação com as taxas do FED. Ao invés disso, as taxas de juros do FED afetam apenas linhas de crédito para hipotecas ajustáveis e taxas de cartão de crédito. [...] A crise aconteceu em parte porque emprestadores se engajaram numa “orgia” com tomadores de empréstimo mau qualificados, fazendo não apenas uma hipoteca, mas até mesmo duas ou três para tomadores de empréstimos que simplesmente não poderiam pagá-los (subprime borrowers). Não haveria bolha de crédito, e consequencialmente não haveria crise, se os emprestadores tivessem apostado em taxas de juros fixas e oferecido apenas a tomadores de empréstimos “prime”, ou qualificados. [...] Talvez reconhecendo isso, austríacos defendam empréstimos subprime como “livre troca[4]” ao passo em que culpam apenas o FED pela bolha imobiliária, como sendo apenas resultado de baixo custo para financiar projetos residenciais.
Os austríacos também obscurecem a realidade de que a crise foi uma bolha especulativa que nasceu não de projetos de longo prazo envolvendo capital para a construção de casas – que a TACE requer para validar suas previsões acerca de crises induzidas por bancos centrais – mas sim de papéis tóxicos referentes a recursos inventados por emprestadores e firmas de investimento para securitização (nota do tradutor: venda de dívidas). Na realidade, a crise começou com o pânico engatilhado por calotes dos tomadores de empréstimo subprime vendidos como dívidas (securitizações) prime.
Em resumo, a TACE não se enquadra nos fatos da crise. Uma correção de preços em certas áreas do mercado residencial (outras áreas mantiveram preços estáveis ou sofreram pequenas quedas) não é capaz de explicar um pânico sistêmico em escala mundial.
O que a crise exibiu foi a proposição de que o “livre” mercado, como ele sempre operou no mundo, pode e de fato falha em termos de justiça comutativa e justiça distributiva, e por uma simples razão, a falha moral de inumeráveis atores no mercado na forma de pura ganância – ganância multiplicada pela força e confiabilidade de inúmeras e publicamente conhecidas corporações de crédito – levou a uma legião de abusos de mercado.

Notas de rodapé:

[1] De fato o rifle é, ao seu modo uma das causas, a causa material, mas não é a causa eficiente.
[2] Não é curioso como o liberalismo radical, que deveria enfatizar a liberdade de repente torna-se determinista?
[3] Essa é uma expressão de Ferrara que se refere a alcunha de “Doomsday economists” dos austríacos, que o tempo todo dizem que vai acontecer uma grande crise.
[4] Aqui ele brinca indiretamente com a ideia austríaca libertária de que se algo é consensual, logo é justa.

*Christopher A. Ferrara é jus-filósofo, teólogo católico, um dos líderes do movimento pró-vida nos Estados Unidos e autor de livros como "The great façade", "Liberty the god that failed" e "The Church and the libertarian".

FERRARA, Christopher A. The Church and the libertarian: a defense of Catholic Church's teaching on man, economy and State. Minnesota: The Remnant Press, 2010.

Os artigos aqui republicados têm a única finalidade de divulgar ideias e os trabalhos originais. Para maiores informações procure os originais nos sites, livrarias e sebos credenciados aos autores e editoras.

domingo, 16 de dezembro de 2018

A caridade ainda é importante: Da eficácia das obras com fé.

Pe. José Victorino de Andrade, EP
Créditos: https://presbiteros.arautos.org/2013/08/a-caridade-que-permanece/

Na segunda metade do séc. IV, Juliano pretendeu que o Império Romano promovesse algumas ações caritativas em detrimento das eficientes e inovadoras práticas sociais cristãs. Não pretendia somar esforços, mas dividir ou mesmo totalizar, por isso, não tardou em perseguir os seguidores de Jesus. Entretanto, seria Juliano a sair desta vida precocemente, à semelhança de suas obras, morrendo numa desastrosa campanha contra os persas. E as obras sociais por ele estimuladas, imitações das ações caritativas impulsionadas pelo amor, revelaram a fragilidade e inconstância das ações puramente humanas.
Também hoje, a solidariedade que não tem seus fundamentos em Deus e no amor ao próximo, corre sempre o risco de ser instrumentalizada e reduzida a uma prestação de serviços. Para não ser manipulada por interesses que se desviam do bem comum e da dignidade humana, é sempre necessária uma referência que transcenda o homem e o seu egoísmo. Ora, o mandamento novo dado por Jesus (Jo 13, 34) leva os cristãos a um dinamismo próprio, pois continuamente estão chamados a conciliar, coerentemente, a Fé e as obras (Tg 2, 14).
A caridade praticada por uma coletividade tem sempre tendência a ser mais eficaz do que a dos indivíduos, mas esta corre sempre o risco de ser sufocada pelas exigências e desafios contemporâneos se não contar com uma colaboração ativa e efetiva de todas as instituições empenhadas na construção de um mundo mais justo e pacífico. Neste sentido, a Igreja tem um forte aporte a dar ao Estado: transforma a Fé num “serviço ao bem comum” fazendo com que a sociedade caminhe para um “futuro de esperança” (Lumen Fidei, n. 51). Sabe, ademais, que o que é de Deus permanece…
À ordem temporal, a Igreja lembra em seu Compêndio de Doutrina Social a responsabilidade de “tornar acessíveis às pessoas os bens necessários materiais, culturais, morais, espirituais”, tendo presente que o “fim da vida social é o bem comum historicamente realizável” (n. 168). E continua o documento: “O bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação. Deus é o fim último de suas criaturas e por motivo algum se pode privar o bem comum da sua dimensão transcendente” (n. 170).

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A "heresia praxeológica" por detrás do libertarianismo.

Christopher A. Ferrara*


Christopher Ferrara

O que a teoria da utilidade marginal subjetiva da “praxeologia” nos diz sobre uma sociedade virtuosa? Num primeiro instante, nada. Mas esta insistência numa teoria da utilidade exclusivamente subjetiva de acordo com a qual, a ação humana é governada por uma “lei” que diz que cada indivíduo aloca recursos escassos de modo a satisfazer sua escala ordinal de valor, é na verdade, o conceito-alicerce para o argumento libertário em favor da “liberdade”.


Se as ações humanas são uma simples série de cálculos sobre alocação marginal de recursos escassos, e se estes cálculos são a “lei” da ação humana, então não existe padrão de justiça no comércio que não seja o acordo voluntário de cada “homem calculante” um com o outro. Desta forma, o mercado na mesma proporção em que tecnicamente se regula, também se torna moralmente auto-regulável, e, portanto, imune a correção moral da autoridade da Igreja.
E se o preço justo não é nada mais que o preço de mercado, preço este que nasce de uma infinidade de cálculos marginais subjetivos de inúmeros indivíduos, então, convenientemente o mercado nunca falha em ser justo[1]. Disso se segue que a melhor sociedade é uma “sociedade de livre-mercado” onde toda a ação humana está livre de qualquer restrição às trocas entre pessoas, exceto é claro às arbitrariamente selecionadas proibições acerca de violência e roubo (incluso roubo por fraude). [...]
Então, se nós esquecermos que na visão austríaca a economia não tem nada a ver com a moralidade (como o próprio Mises esquece ás vezes), então entendemos porque os economistas austríacos defendem que a praxeologia pode revelar a profunda e moralmente funcional verdade não apenas das trocas econômicas, mas de toda ação humana em sociedade. Por isso, Rothbard entende que a economia é apenas uma parte “bem trabalhada” da praxeologia, sendo todo o resto “uma grande área inexplorada”. Em outras palavras, para os austríacos a praxeologia era uma ciência da ação humana em sua totalidade, desde guerra a política. Não há registros de qualquer tentativa bem sucedida de explorar essas outras áreas ainda não trabalhadas, e Rothbard fala apenas de “tentativas” e “inícios promissores”, e até hoje, sem qualquer sucesso, Thomas Woods confiantemente descreve a praxeologia como “a ciência do comportamento humano”.
Embora a praxeologia nunca tenha dado qualquer evidência de algum funcionamento fora do mundo mágico e hipotético da Escola Austríaca, os austríacos frequentemente empregam termos como “ganho”, “liberdade”, “benefício”, “felicidade”, “bem-estar”, “satisfação”, “desejo” e “necessidade” nas suas análises praxeológicas, como se elas fossem mais que relações econômicas. O próprio Rothbard dizia:
“Existem basicamente dois tipos de relações interpessoais ou trocas: as livres e voluntárias, e as coercitivas ou hegemônicas [...] Sempre que um ato pacífico e livre de troca ocorre, o princípio do mercado foi posto em operação; e sempre que um homem coage outro por ameaça de violência (punição legal), o princípio hegemônico foi posto em operação. Todas as sociedades têm aspectos de ambos em tons de cinza. Quão maior for o princípio de mercado, maior será a liberdade e a prosperidade. Quão maior for o princípio hegemônico, maior será também a pobreza e a escravidão. Tais são as leis que a praxeologia apresentam a espécie humana... Neste ponto o praxeologista se retira, e o ético precisa escolher o que julga ser melhor[2]”.
Perceba como Rothbard carrega o texto com termos cheios de conotações morais e depois diz sair de cena para que o filósofo moral (ou o ético) entre e debata o que é uma boa sociedade! Ele faz isso, claro, depois dele mesmo viciar a discussão com a terminologia austríaca permeada com vários julgamentos de valor implícitos, que levarão, obviamente, qualquer um a conclusão de que somente o mais absoluto laissez-faire, onde o aborto e o infanticídio por inanição são permitidos, podem fornecer uma sociedade perfeitamente ética! Quando um austríaco tenta definir termos como “livre” em relação a um tipo particular de sociedade, ele se torna um moralista que usa a “praxeologia” como janela de seu julgamento moral.
O que um austríaco realmente quer dizer com a ideia de que todo mundo “ganha” a partir da soma da busca de seus interesses individuais sob o “princípio de mercado” como garantidor da “liberdade”? [...] “O que eles querem dizer com ganhos para a sociedade, por exemplo, ao permitir que o “auto-interesse” leve alguém a destruir uma vida no útero da mãe? Permitindo a sodomia? Vendendo pornografia? Que noção é esta de “ganho”, quando o Estado passa a permitir estes males? Evidencia-se assim que qualquer comportamento pernicioso, desde que praticado de modo consentido entre dois adultos é o sumo bem do pensamento libertário.
Aqui os católicos liberais e/ou libertários tendem a ser elusivos em suas apresentações. Em um momento eles dizem estar apenas descrevendo “o que é” (mercados funcionam melhor quando são livres), e não dizendo como “deveria ser”. Mas, no momento seguinte, eles tiram seus chapéus de economistas e põem os de filósofo moral e dizem que toda uma ordem social baseado na livre troca entre pessoas é de fato o que o mundo “deveria ser”. A constante troca de papéis entre o cientistas descritivo e o moralista prescritivo é uma contradição constante no pensamento austríaco e dos demais credos liberais.
No exato momento em que eles transitam da economia “livre” para a ideia de que todas as relações sociais, mesmo fora do aspecto estritamente econômico deveria obedecer os mesmos princípios de mercado, eles estão, neste mesmo ato, contradizendo a ideia de que estão apenas construindo uma teoria científica. E ao fazer isso, sem perceber, eles criam uma sociedade tão dogmática quanto a que eles dizem combater, a sociedade de um só dogma, a sociedade da “virtude da liberdade”.
Com ou sem praxeologia, a Escola Austríaca não pode sustentar uma filosofia política que realmente abarque o homem integral na sociedade. Em outras palavras, a economia austríaca não pode sustentar nenhuma filosofia política. Tudo o que ela pode fazer - e isso é tudo o que ela pode fazer - é predizer que forma de economia pode servir aos desejos de um homem moralmente decaído por gratificação material ao produzir bens de modo mais eficiente.Não há dúvidas de que o “livre” mercado pode satisfazer várias necessidades e desejos com inexaurível ingenuidade, mesmo que para isso ela precise criar novos desejos e novas “necessidades” num círculo vicioso infinito de invenção, produção e troca. Mas o que isso nos diz sobre a constituição de uma boa sociedade do modo que a Igreja o vê a luz da revelação: corpo e alma com um destino eterno? Nada.

[1] Em Toward a truly free market, John Médaille chama a atenção para o fato de que os conceitos tomistas de justice comutativa e justice distributiva são a mesma coisa no pensamento liberal.
[2]Rothbard, Power and market, online edition, p.1363.

Os artigos aqui republicados têm a única finalidade de divulgar ideias e os trabalhos originais. Para maiores informações procure os originais nos sites, livrarias e sebos credenciados aos autores e editoras.

*Christopher A. Ferrara é um jus-filósofo e teólogo católico, militante pró-vida, tradicionalista e autor de vários livros como "The great façade", "Liberty, the God that failed" e "The Church and the libertarian".

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Monarquia tradicional, monarquia moderna e o problema da soberania.


Palestra originalmente conferida ao CMEF - Centro Monárquico de Espera Feliz


Para começar esta exposição, o importante é frisar que apesar do movimento monarquista ser adepto e propositor da monarquia constitucional parlamentar, que esta por sua vez não é a única forma de monarquia. Existem pelo menos três formas de monarquia que podem ser abordadas, começaremos da mais antiga para a mais moderna.

a) Monarquia aristo-democrática ou ainda, monarquia clássica ou tradicional.
b) Monarquia absoluta.
c) Monarquia parlamentar constitucional.

A primeira, a monarquia tradicional, fundamenta-se não primeiramente no poder régio, mas no poder dos senhores feudais ou dos representantes orgânicos de uma comunidade. Isto é, o rei governa e tem o poder de executar, legislar e julgar, contudo, ele só o pode fazer conforme a permissão das autoridades locais que intermediam o povo e o próprio rei. Entre o rei e o camponês ou vilão mais simples, havia a nobreza, que na Europa, caracterizava-se como sendo “Nobreza de espada” (embora na modernidade viesse nascer a nobreza de toga). Seu nascimento se dá na ruina do Império Romano do Ocidente. Este, já sem proteção própria, começa a acordar com os bárbaros que estes o defendam dando como recompensa porções de terras aos generais, que a dividiriam posteriormente entre seus soldados. Este pacto chamava-se foedus.

Do foedus nasce o feudo. Após o ocaso do Império Romano do Ocidente, os grandes proprietários de terra bárbaros, preocupados em oferecer uma ou outro proteção, e preocupados com o estado geral de decadência da sociedade, começam a acordar (nem sempre pacificamente) entre si uma nova ordem social, sempre tutelada pela Igreja (embora nem sempre pacificamente). Daí nascerá o reino franco. No processo pelo qual estas elites de proprietários de terra acordam uma nova ordem política entre si, grupos mais poderosos conseguem se sobrepor e estabelecer-se a si como família real, gozando da lealdade dos demais que ajudaram a alcançar esta dignidade. E assim nascem os acordos de suserania e vassalagem feudais, ou laços feudo-vassálicos. Em que um camponês ou vilão presta vassalagem a um cavaleiro ou a um nobre, onde o cavaleiro presta vassalagem ao nobre, e onde o nobre (ou senhor feudal) presta vassalagem ao rei; e este, por sua vez, vassalagem ao Papa.

Assim, o rei só podia governar e legislar por meio da anuência e consentimento dos nobres locais, e seu poder era limitado não pela sua própria corte, mas pelas autoridades locais e pelo direito consuetudinário ou costumeiro. O primeiro funcionava por meio dos parléments ou e o segundo por meio da jurisprudência. Em casos realmente dramáticos eram convocados côrtes gerais ou Estados gerais. Essa monarquia era aristocrática na medida em que sua representação se dava por meio de uma nobreza de sangue hereditária, e era democrática, pois em muitos casos, os nobres consultavam seus vassalos (cavaleiros, camponeses e vilões) em suas necessidades, e tudo era decidido em reuniões locais mediante votação e discussão. Desta forma, criava-se uma estrutura hierárquica que ia do senhor feudal mais local e menor, com seus poucos servos até o rei passando por senhores maiores, e por senhores de alcance mais regional. Comenta sobre a relação entre o rei e a nobreza o professor Dr. Plínio Corrêa de Oliveira (1993, p.116):

“As rédeas do mando desse bem comum regional iam ter normalmente às mãos de algum senhor de mais amplos domínios, mais poderoso, mais representativo da região inteira, e assim capaz de lhe aglutinar as várias partes, reunindo-as num só todo sem prejuízo das respectivas autonomias: tudo isto para efeitos de guerra como para as atividades inerentes à paz. Este senhor regional – ele próprio miniatura do rei na região, como o simples senhor feudal o era na localidade mais restrita – tocava assim uma situação, com um conjunto de direitos e deveres intrinsecamente mais nobres. Assim, o senhor feudal – o proprietário e senhor nobre cujo direito de propriedade participava um grande numero de trabalhadores manuais, ficava devendo ao seu respectivo senhor uma vassalagem análoga (mas não do mesmo tipo) que esse senhor regional, por sua vez, prestava ao rei”.
O grande defensor e mais famoso apologeta deste modelo é sem dúvidas São Tomás de Aquino. Embora este favorecesse idealmente mais o caráter democrático, não negava que na prática o princípio hereditário é mais seguro. Comenta o professor dr. Leonard van Acker da PUC-SP:

“Na Summa Theologica, santo Tomás esboça um esquema de  realeza temperada, regime misto de monarquia, aristocracia e democracia – ou monarquia aristodemocrática – como adequadamente nomeou o professor Arlindo Veiga dos Santos. Em tal regime o monarca seria o único chefe supremo. Mas haveria uns poucos chefes subalternos, constituindo um escol aristocrático. O elemento democrático consistiria em que todos os chefes, inclusive o rei, seriam eletivos, sendo todos cidadãos  juntamente eleitores e elegíveis. Finalmente no comentário a Política de Aristóteles, Santo Tomás não deixa de reconhecer que a eleição do monarca embora melhor em si, por permitir a escolha do candidato mais digno e apto, na prática é menos vantajosa do que a sucessão hereditária”. (1954, p.16)
A monarquia absoluta nasce de tendências de alguns reinos em serem mais regalistas, e do renascimento do direito romano circunscrito no corpus iuris civilis de Justiniano. Começou assim o nascimento do Civil law; a lei não mais se basearia fundamentalmente num direito costumeiro e em precedentes, mas em doutrina, hermenêutica e exegese. Isso demanda uma sofisticação muito maior, uma cultura letrada de juristas, e doutores. Nasce daí a necessidade de outro tipo de nobreza, não apenas a nobreza de espada, mas a nobreza togada. Essa nobreza de toga, municiada pela nova visão de direito e pelas necessidades mesmas de implantação dessa visão começa a constituir uma burocracia.

Em sentido weberiano, a burocracia consiste da despersonalização das relações políticas e econômicas, cargos e funções começam a não ser mais concedidas mediante favores ou simpatias pessoais, mas por capacidades e concursos. Os limites de atuação de cada cargo não são mais aqueles que o rei consentir, mas aqueles delimitados em regimentos, leis ordinárias ou ordenações régias.
A nova visão de direito criou ainda, como se pode prever, uma crise fundamentação do direito, no conflito entre o common law e o civil law; precavendo-se contra os avanços da monarquia os parléments ou foros se aferravam ao direito costumeiro, ao passo que o rei avançava com a doutrina jurídica do civil law. Esse conflito levou a diversos impasses, o que permitiu em França que Luís XIV conseguisse ignorar e calar o parlément de Paris.Comenta o historiador William Doyle (1991, p.30):

 “O antigo regime atingiu o auge da perfeição nos primeiros anos do governo pessoal de Luís XIV, pois foi nessa época que a liberdade de ação do rei esteve mais desimpedida. Já desde os tempos medievais a monarquia estivera lutando para livrar-se das restrições impostas pelas instituições feudais. [...] O parlément de Paris fora reduzido ao silêncio e garantira-se o controle das províncias pela investidura de intendentes.” 
Com o que Niall Ferguson chamou em “A ascensão do dinheiro” de “o renascimento da moeda”, os laços feudo-vassálicos ficaram enfraquecidos. O ganho de força das relações mercantis sobre a economia in natura, tornou-se tão grande que provocou a queda dos custos de transação e a possibilidade do renascimento das cidades, os burgos (donde advém a palavra burguês). Isso fez com que ao invés de o servo ficar preso a terra e obrigatoriamente o senhor o supervisionasse, que ele tivesse maiores liberdades ao passo em que arrendava as terras ao servo. Esta liberdade permitiu que a nobreza toda se centralizasse em Paris, enfraquecendo assim a influência régia da monarquia sobre os servos da gleba e os burgueses. Longe do contato com o povo, houve um enfraquecimento dos poderes intermediários entre a monarquia e o povo. Diz o Prof. Dr. Plínio Corrêa de Oliveira (1993, p.120)
“Ao contrário do monarca feudal, o monarca absoluto dos tempos modernos tem em torno de si uma nobreza que o acompanha noite e dia. Ela serve-lhe principalmente de elemento ornamental sem qualquer poder efectivo. Desta forma, o rei absoluto acha-se separado do resto da nação por um valo profundo, melhor se diria, por um abismo.”
Confirma-o a análise de Roland Mousnier apud Doyle (1991, p. 31)

“A monarquia de Mousnier é uma instituição acima e fora da sociedade, que utiliza sua plenitude de poder para orientar, proteger e moldar a nação a partir de uma perspectiva superior que nenhum súdito dispõe.” 
Historicamente, entretanto, o absolutismo divide-se em dois períodos um inicial e que majoritariamente durou nos reinos católicos (como o da península ibérica) e o modelo protestante, já num desenvolvimento mais tardio. O defensor mais notável do primeiro absolutismo foi Louis de Bonald; e o defensor mais notável do segundo Thomas Hobbes. Louis de Bonald (1988, p.81), criticando a tripartição de poderes de Montesquieu diz que só existe um poder: 

“Acerca do poder legislativo, segundo os modernos legisladores, eu chamo de função legislativa, uma vez que eu só reconheço um único poder, o poder natural ou conservador, no qual residem funções legislativas, executivas e judiciais.”
Para De Bonald, por não haver mais que um poder que é dado por Deus através da lei natural, não deve haver mais que um único depositário deste poder, com unidade de ação e de consciência. Argumento parecido, porém voltado para o contratualismo é o do inglês Thomas Hobbes (2014, p.216); contra a pluralidade de vontades que marca a democracia, argumenta o protestante:

“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defender-nos das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-nos assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os demais são súditos”.
A palavra soberano aqui é de grande importância, pois como veremos mais adiante, ela tem uma história, um significado e um problema guardado em si. Antes porém, vamos às monarquias modernas.
O caráter central da monarquia constitucional parlamentar reside em três pontos:
1- Que o rei reina, mas não governa.
2- Que o governo, não sendo régio, pertence aos súditos, que o exercem segundo a constituição.
3- Que o governo é pluricéfalo, uma vez que ele não possui funções executivas, judiciais e legislativas, mas são em si mesmo e em separado, executivas, legislativas e judiciais.
A tricefalia do Estado cria núcleos de vontades individuais irreconciliáveis e conflitantes, que tira do Estado sua faculdade racional de administrar. 

Assim, se no passado, na monarquia aristo-democrática, o rei prestava vassalagem ao Papa, e por meio dele estava limitado pela lei natural e pela lei divina (Doutrina das 4 leis de São Tomás de Aquino) ou ainda, se na monarquia absoluta ele ainda prestava mais fracamente essa vassalagem, ou como no caso protestante, se livrava completamente do Papa, tornando-se como no caso de Henrique VIII, ele mesmo, o Papa de sua Igreja; ainda assim, de toda forma, o rei estava sujeito a lei divina e natural, embora não houvesse quem o julgasse.

No caso da monarquia constitucional, embora o parlamento possa se inspirar na lei natural, ele não está obrigado a isso, e seu poder constituinte é absoluto e soberano. E uma vez que a constituinte crie o texto basilar de todo o direito – a constituição – tudo no edifício legal deve estar juridicamente fundado na constituição. Desta forma, o rei só presta obediência à lei natural e a lei divina se a constituinte for cristã, fora isso, ele não está obrigado a obedecer aos desígnios de Deus. A diferença para a monarquia neste caso é a da transferência da soberania.
Monarquia aristodemocrática ou tradicional – Soberania Divina, representada pelo Papa, mediator Dei terrarum.

Monarquia absoluta – Em um primeiro momento, soberania divina, sem mediador e com o rei como seu depositário (De Bonald). Em um segundo momento, o rei é soberano e decide en se e per se o certo e o errado (Hobbes).

Monarquia constitucional – soberania popular, a nação in abstracto cria soberanamente o texto constitucional sendo ele fonte do certo e do errado, a nova Bíblia da nova religião do Estado moderno, e a constituição é a depositária da soberania popular. Acerca da soberania temporal do Papa e da Igreja diz Perillo Gomes (1933, p.134);

“Esse poder de controle foi reconhecido na pessoa do Papa. Deste modo, na Idade Média, os povos tinham um recurso pacífico para solucionar as desgraças de uma tirania - o apelo à mediação do Pontífice Romano. Modernamente há só o recurso do desespero, isto é, o recurso à guerra e à revolução.”
Lembremos que nos tempos de Perillo não havia ainda a ONU, que muito imperfeitamente e de modo completamente anti-cristão, atua como esse mediador.
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O problema da soberania

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Mas quid est majestas? Ou o que é a soberania? Para compreender este termo temos de nos esvaziar da distorção moderna deste conceito. Soberania em linguagem contemporânea é a autonomia do corpo político de um Estado-nação de gerenciar sem interferências externas seus negócios e questões internas. Mas não é isto que significa soberania em sua origem. Antes de chegar a sua origem histórica, partamos de seu significado real tal como diagnosticado pelo filósofo Jacques Maritain em o Homem e o Estado (1959, p.56/63):

“[...] nenhuma instituição humana tem, em virtude de sua própria natureza, o direito de governar os homens." [...] "A lei (para os hobessianos e galicanos) não precisava ser justa para ter força de lei. A Soberania tinha um direito a ser obedecida, qualquer que fosse seu mandamento". [...] "Deus é a própria fonte da autoridade na qual o povo investe esses homens ou essas repartições, mas nem por isso são eles vigários de Deus. São vigários do povo, e nessa qualidade, não podem ser separados do povo por qualquer atributo essencial superior. A Soberania significa uma independência e um poder que são supremos de modo separado ou transcendente, exercendo-se sobre o corpo político como que de um plano superior”.
O Estado para Maritain deve deter potestas, não majestas como pontua o mesmo, corrigindo Jean Bodin; assim, o corpo político detém a supremacia legal sob suas instâncias inferiores, mas não detém o poder de por si mesmo decidir o que é o bom e o justo, ao contrário, somente a lei natural e divina o tem. Mas donde advém esta separação entre o exercício do poder e sua legitimação? Começa com Nicolau Maquiavel. Quando o mesmo diz que o príncipe deve fazer de tudo e transcender todos os limites morais para manter seu poder, ele está dizendo em outras palavras que o poder estatal não deve prestar contas a lei moral (lei natural + lei divina).

Daí advirão Jacques Benigne-Bossuet, amante mais da França do que da Igreja, e Jean Bodin (protestante), que advogarão uma independência total entre o poder eclesiástico e o poder do rei. Bodin e Bossuet (o primeiro protestante e o segundo adepto da heresia galicana) não chegavam a afirmar um poder transcendente do rei, mas ao alegar que ele reina por direito divino e que ninguém os poderia julgar (nem a Igreja), ele tornou impossível aos homens comuns dizer quando seu exercício de poder era ilegítimo. Pois não havendo um poder supra-temporal (o Papado) para dizê-lo, somente Deus poderia fazê-lo. E este ao parecer impassível diante dos desmandos de alguns tiranos, dava argumento aos seus bajuladores (os do tirano) de que Deus apoiava tudo o que eles faziam. E como provar que não?

Daí surgirá a necessidade de estabelecer um teto mais seguro para a legitimidade do rei do que a simples confiança em Deus. Como os tempos eram já de secularismo crescente, o resultado foi tirar Deus da equação, estabelecer uma constituição. E pimba, temos então, a república, o constitucionalismo e o Estado laico. A consequência é que temos a instabilidade republicana que, para manter-se exige uma espécie de limitação da democracia como no caso dos Estados Unidos onde há um colégio eleitoral que modera os ímpetos de momento do povo, o chamado “direito dos estados”. E cria-se também um patriotismo desregrado onde os próprios elementos da estatalidade ganham ares sagrados como os founding fathers,  a constituição, a bandeira, etc. O Estado laico é um Estado agnóstico, e como tal, ao exercer soberanamente seu poder, põe-se a si mesmo no lugar de Deus.

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Estudo de Caso – Charlie Gard e Alfie Evans

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O caso Charlie Gard tem sido questão de debate forte na mídia e nas redes sociais, o fato é que alguns grupos liberais e libertários usam o argumento de que fosse o sistema de saúde britânico público, Charlie Gard não teria sido condenado a morte. Tal argumento, embora possa ter o mérito econômico (algo que não analizaremos aqui), não o tem em sua essência, pois o poder que um órgão privado tem jamais pode se opor no Estado moderno às decisões judiciais.

Ou seja, o argumento da dialética "Público x Privado" não passa de cortina de fumaça. O ponto verdadeiro da questão, verdadeiro e decisivo é o que citamos acima através de Jacques Maritain no seu brilhante "O homem e o Estado". Não é o fato de haver uma estrutura burocrática que envolve o corpo político a fornecer saúde de maneira socializada que leva Charlie Gard à morte, mas sim o fato dessa estrutura requerer o poder divino, recometer o pecado de Adão. Decidir per se e en se o bem e o mal.

O caso Charlie Gard é apenas mais uma manifestação do problema da Soberania. O Estado existe para servir ao homem, não o homem ao Estado.

Estivesse Charlie Gard na Polônia provavelmente ele estaria recebendo seu tratamento alternativo, pois ao contrário do governo inglês, o polonês nessa matéria não requer o poder divino. 
Assim, importa também a Igreja ser esse poder soberano sobre todas as nações para não só proteger os povos contra a imoralidade de um "deus imanente" chamado Estado Soberano, como também proteger os povos contra os poderes supranacionais que tentando ocupar o vácuo da Igreja, legisla em favor da heresia e do erro, sendo um outro poder humano soberano sobre todas as nações (globalismo). Para não depender da própria cultura popular e dos cuidados do povo quanto a manutenção do poder religioso limitando os desvios da constituição, uma coisa interessante para o mundo contemporâneo seria o presidente indicar um conselho vitalício de teólogos, padres e pastores etc, para que eles indiquem segundo os princípios cristãos juízes para a suprema corte. Como se trata de um cargo vitalício, demoraria gerações para reverter integralmente o quadro jurídico e seria muito difícil para os secularistas e comunistas sem uma revolução.


Referências

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Hunter Books, 2014.
DE BONALD, Louis-Ambroise. Teoría del poder político y religioso. Madrid: tecnos, 1988.
GOMES, Perillo. O Liberalismo. Barcelona: Imprenta Boada, 1933.
OLIVEIRA, Plínio Corrêa de. Nobreza e elites tradicionais análogas. São Paulo: TFP, 1993.
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. São Paulo: Ática, 1959.
DOYLE, William. O Antigo Regime. São Paulo: Ática, 1992.
SANTOS, Arlindo Veiga dos; ACKER, Leonard Van; AQUINO, Santo Tomás. A Filosofia Política de São Tomás de Aquino/ De Regno

sábado, 1 de dezembro de 2018

Se tudo é verdade, o que é a verdade?


O homem hodierno julgar-se-ia menos moderno se não criticasse os antigos. Para ele, as verdades passaram a possuir uma validade. As descobertas do passado foram ultrapassadas pelo presente, e sofrerão reparos no futuro. Tudo é transitório. Apenas a opinião alheia se enche de brios, pouco disposta a dialogar, ou pelo menos, a reconhecer uma verdade exterior.
Consequentemente, muitos autores contemporâneos, ao pretenderem apoderar-se da verdade, sentam-se em sua cátedra embevecida de pretensões infalíveis, cujos escritos destilam os seus próprios dogmas, muito distantes, por vezes, do mundo real. E quanto mais escandalosos, provavelmente, mais publicitados e comentados.
As fátuas inverdades emanadas vão ao encontro de homens ávidos de mudanças que transformem a sua existência, consequência do vazio deixado pelo rechaço à metafísica e aos seus interlocutores. Ao enveredarem por novas vias que criam uma ruptura com as antigas, aderem facilmente a novos projectos que lhes tragam uma libertação dos velhos preconceitos éticos.
Numa cultura hedonista, na qual as a igreja foi substituída pelo shopping, a beleza da virtude pela estética corporal, o jejum e a penitência pela dieta e o suor no ginásio, uma religião de dogmas e prescrições morais só poderia surgir ao pensamento contemporâneo como algo ultrapassado, impositivo, que asfixia a própria pretensão de verdade.
Assim, nega-se a verdade na sua transcendência absoluta, da qual dimanam todas as demais, e corre-se o sério risco de “panteistizá-la”. Todos com a verdade, e a verdade com todos. Se tudo é verdade, terá sentido o próprio termo? Como convidar o homem a sair de si, e dos seus preconceitos recentemente criados, a esmo, conforme o cardápio apresentado por verdades relativizadas, engolidas sem mastigar, que o empanturram de critérios pouco judiciosos, assimilados com a mesma rapidez com que muda o canal da TV?
A resposta não é uma verdade abstracta, mas uma pessoa concreta: Jesus Cristo, a “Palavra eterna que se exprime na criação e comunica na história da salvação” (Verbum Domini n. 11). Para o cristão, a Verdade absoluta, Deus, encarnou e fez-se homem (Cf. Jo 1, 14), possui um rosto — “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9) — e um nome, não havendo debaixo do céu salvação em nenhum outro (Cf. At. 4, 12). Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Cf. Jo 14, 6). Esta é a grande novidade do cristianismo, um Deus pessoal, não distante, que entra na História.
Como renunciar Àquele que possui palavras de vida eterna (cf. Jo 6, 68), e trocá-las por palavras humanas, levadas e esquecidas pelo tempo, ou superadas por uma nova erudição ou pensamento falível? Em Jesus, “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade” (VD n.11). Esta, excede toda e qualquer capacidade intelectual humana que “com as suas próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria podido conceber” (Loc. Cit.).
Como chegarmos à conclusão de que não nos enganamos? São João é nossa testemunha: “‘Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade’ (Jo 1, 14b). A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós” (VD n. 11). Apenas a Revelação poderia trazer uma verdade plena que orientasse os homens em sua peregrinação terrena e os levasse a um seguro conhecimento, tanto quanto possível à sua natureza limitada.
Descobrimos assim que a verdade não é abstracta, variável, limitada, mas que é o próprio Deus encarnado, que entrando na história concreta dos homens, com Palavras de vida eterna, orienta-os na sua peregrinação terrena, convidando-os a conformar a sua vida à luz da Revelação.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

A lei canônica como modelo para a lei estatal.


Pe. José Victorino de Andrade, EP



A lei proveniente do Estado tem o dever de atender ao bem estar e à ordem terrena. Porém, o homem é composto de corpo e alma, e por isso é necessária uma sociedade espiritual que o oriente para a eternidade: a Igreja. Uma sociedade, aliás, não meramente espiritual, mas também organizada hierarquicamente, terrena e visível. Não se deve, entretanto, considerar duas entidades, mas uma única realidade, conforme nos explica a Lumen Gentium “Da mesma forma que a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de salvação, também a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo” (n. 8).
A fim de dirigir e governar os seus membros, esta também possui um conjunto de leis chamadas eclesiásticas ou canônicas. O seu estudo requer um anterior aprofundamento da lei em geral, na sua realidade e variedade, a fim de estabelecer as bases para um conhecimento mais profundo e preciso da sua aplicação e importância.
Uma abordagem do direito canônico, enquanto ordenamento eclesiástico, leva-nos a algumas considerações históricas e particulares. Em primeiro lugar, deve-se ter em conta que ele influenciou e inspirou grande parte dos sistemas legais vigentes no Ocidente. Se bem que em dado momento da História tivesse havido um certo retorno ao direito e à cultura greco-romana, sobretudo com o advento do Renascimento e a promoção e influência dos legistas junto às cortes, não há dúvida que o direito ocidental muito deve à Igreja:
O direito canônico foi o primeiro sistema legal moderno da Europa, e permitiu demonstrar que era possível compilar um corpo legal coerente e sofisticado a partir da miscelânea de estatutos, tradições e costumes locais frequentemente contraditórios com que tanto a Igreja como o Estado se confrontavam na Idade Média.1
Além de estar na origem do desenvolvimento legislativo do Ocidente, pertence aos fundamentos do moderno sistema jurídico, e do direito criminal, baseado de certa forma na teoria da reparação de Santo Anselmo e na moral cristã.2 Também Miguel Reale considera que
tanto no momento da elaboração da lei, como no da sua aplicação e interpretação, a Moral intervém de maneira decisiva, sendo certo também que certas regras jurídicas não têm outra justificação senão a decorrente de regras morais, as quais, por sua vez, se apoiam ‘em uma certa concepção religiosa do mundo’.3
Na medida em que o direito canônico ajudou a construir o moderno sistema legal, também hoje ele pode servir de referência pelas suas características e universalidade, iluminando e contribuindo com os demais legisladores e codificações legais.
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1. WOODS JR. Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009. p. 12. O autor desenvolve este tema no capítulo 10 deste mesmo livro, sobretudo nas páginas 205-208.
2. Cf. Ibidem, p. 221.
3. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 488.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

"Papa" Francisco: A raiz próxima da “nova” moral: o empirismo britânico

Créditos:http://salveregina.altervista.org/blog/arquivos/1543?doing_wp_cron=1542712876.1364009380340576171875
A filosofia sobre a qual se funda a nova moral de situação é remotamente aquela de Ockham e proximamente aquela do empirismo representado principalmente por Hobbes (†1679), segundo o qual tudo é matéria, mesmo a alma humana. O princípio e fundamento desta filosofia é o lucro pessoal e o egoismo, fonte do liberalismo politico e financeiro.
Um outro pensador sobre o qual se fundam os “neo-moralistas” é Locke (†1704), que é um puro sensista: o homem conhece apenas o sensível e não pode colher a essência das coisas materiais nem elevar-se ao transcendente e a lei objetiva e universal; as ideias e os conceitos são apenas “nomes” e não colhem a realidade que exprimem (nominalismo).
Também Berkeley (†1753), funda como todos os empiristas, as raízes do seu pensamento no nominalismo de Ockham (†1349), segundo o qual as ideias são puros nomes. Berkeley, antes de tudo, acentua o sensismo de Locke porque não aceita nem sequer o conhecimento sensível interno, mas se firma apenas nos sentidos externos. A realidade é material e coincide com a sensação que temos dessa (“esse est percipi/o ser consiste no ser conhecido pelos sentidos”).
Outro filósofo empirista é Hume (†1776), segundo o qual tudo aquilo que supera a experiência sensível não tem nenhum valor cognoscitivo. Ele nega de maneira categórica e total o princípio de causalidade (“um efeito deve ter uma causa”): isto que vulgarmente chamamos causa não produz o efeito, ma apenas o precede. Então, o efeito é “post hoc sed non propter hoc”.
Agora, se nos limitamos apenas a sensação, é claro que veremos um efeito depois do outro e não o nexo entre causa e efeito, porque não posso tocar com a mão a causalidade a produção do efeito. Todavia tal nexo, mesmo se não é experimentável sensivelmente, é inteligível e me forma uma ideia racional abstraindo-a do conhecimento sensível. Para Hume, ao invés, a causa é um puro nome (“nominalismo”) e normalmente precede o efeito, mas não de maneira constante e necessária, e sobretudo sem produzi-lo. Por exemplo, se chuto uma bola e essa corre, segundo a metafísica clássica e tomística o movimento da bola é efeito do chute que lhe dei, enquanto segundo Hume existe só uma sucessão opinável ou provável de movimentos sem que o primeiro influa sobre o outro. Assim, o pai não é causa do filho, o fogo não é causa da fumaça, o tiro não é causa do homicídio e, se um fenômeno (pai/tiro) até agora precedeu um outro fenômeno (filho/homicídio), é provável que o precederá também no futuro, mas não o causa, e então, em moral não existe o conceito de responsabilidade subjetiva.
Enfim, Stuart Mill (†1873) se baseia em Hume e reafirma que todo conhecimento humano se reduz a uma simples sensação. Ele nega todo valor a razão e se limita apenas a sensação e a indução experimental. Nega o princípio de causalidade e afirma que tal fenômeno (paternidade/punhalada) sucede normalmente outro (filiação/assassinato) sem causa-lo [28].
A moral de situação ou da conveniência pessoal, que é capricho e licença, é a conclusão prática do nominalismo e do iluminismo britânico e é a contradição radical da moral objetiva e natural.
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OBS: Leia também os seguintes artigos sobre Burke e o empirismo inglês:
Mais além de Burke e seu conservadorismo.
Uma heresia chamada conservadorismo.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Keynes: Uma crítica



Alguns irmãos podem achar que eu caio no mesmo erro dos católicos liberais ao fazer uso do ferramental técnico keynesiano para análise econômica, só que de sinal invertido. Enganam-se. Os católicos liberais distorcem a DSI, distorcem a doutrina da Igreja, e quando isso por si não basta, simplesmente ignoram o parecer da Igreja sobre assuntos temporais para aderir ao liberalismo. Seja pela via da distorção, seja pela via da “vista grossa”, o magistério se dobra perante a ideologia.

Nada poderia ser mais distante do que eu faço. Aquilo que há de errado em Keynes eu denuncio e renuncio. Por exemplo, Keynes acabou sendo tido por burocratizante e estatista mais pelos seus seguidores (muito dos quais distorceram a palavra do mesmo) do que pelo seu próprio parecer. Contudo, há alguma razão para se extrair isso do próprio Keynes.

Antes de qualquer coisa, Keynes era um autor moderno e liberal. A linha liberal de Keynes era o do liberalismo democrático e social, isto é, sacrifica-se a liberdade econômica em favor de uma economia de caráter “social”, para se preservar a democracia liberal. Keynes entendia que a instabilidade do laissez faire, somado com a extrema desigualdade de ganhos financeiros e renda, eram um convite à agitação violenta das massas, a radicalização e ao totalitarismo fascista e comunista. Sugiro aos interessados na vida de Keynes a biografia do mesmo, escrita por Robert Skidelski.

Por ser liberal, Keynes via o mundo e a sociedade dividida entre indivíduos e Estado, e não vendo mecanismos na própria sociedade (por conta de seus pressupostos errados) que pudessem parar a opressão econômica daqueles indivíduos que detinham a posse do fator capital, Keynes via no Estado a única forma de controlar esse poder. Mas essa opressão não era vista por Keynes apenas como abusos do patrão contra o empregado num clima de luta de classes. Aliás, Keynes não cria que essencialmente a luta de classes era inerente ao capitalismo, para ele os conflitos distributivos entre capital e trabalho se davam pela postura passiva do “Estado guarda noturno”, e a completa ausência de um enquadramento jurídico que definisse as justas atribuições de cada parte no que tange às relações laborais.

Keynes também desconfiava da racionalidade do capitalista, sua experiência no mercado financeiro e sua análise econômica foram capazes perceber que os indivíduos autocentrados buscando maximizar suas utilidades, acabavam por se atentar apenas aos fatores que lhe afetavam diretamente, e tomavam decisões com base nisso, ignorando que outros tantos faziam o mesmo. Assim, a decisão racional de um indivíduo, quando observado do ponto de vista macro das relações coletivas, eram nada racionais e pareciam-se mais com comportamento de bando e manada, ou seja, os animal spirits. Contra a irracionalidade e incerteza não quantificável que o futuro guarda, além das omissas posições políticas diante dos abusos laborais, que outra força poderia proteger uma sociedade atomizada, caótica, com indivíduos desiguais em poder perante um Estado passivo? Keynes não titubeou: o Estado. E como Keynes só via o Estado, creu genuinamente que tudo deveria partir dele.

Se Keynes não fosse um liberal filosófico, se ele tivesse tido a curiosidade genuína de estudar o magistério social da Igreja Católica, além de uma vasta gama de autores distributistas tais como Belloc, Chesterton, além dos carlistas, ele descobriria que no passado havia corpos intermediários na sociedade, com autonomia legislativa sobre seus membros, que poderiam suprir muitas das funções que Keynes passou ao Estado de modo muito mais eficiente. Por exemplo, as relações laborais poderiam muito bem ser regidas parte pelo Estado e parte pela autonomia legislativa de órgãos de classe cooperadas como as antigas corporações de ofício. Os ordo liberais de Freiburg, mais espertos, aprenderam com os erros de Keynes, e passaram a advogar o tripartismo. Órgãos de classe como sindicatos e associações patronais se uniriam mediadas pelo Estado para definir quais regras se aplicam.
Isso não significa, entretanto, que as leis trabalhistas, salário mínimo, política fiscal, política monetária e cambial, são erros que poderiam e deveriam apenas ser geridas pela sociedade, e que, portanto, Keynes estava totalmente errado. Ao contrário, a Igreja mesmo apoiou muitas dessas ideias partindo do Estado, o que faltava a Keynes era o princípio da subsidiariedade. O Estado pode e deve cuidar dessas coisas, mas não sozinho e nem ao mesmo tempo, mas sim de modo gradual e compartilhado, com atribuições de funções aos entes federados mais baixos como municípios e estados, bem como aos corpos políticos da própria sociedade como cooperativas, órgãos de classe, sindicatos, igrejas, etc.

Créditos a Reação Nacional pelas imagens
Assim, sobrariam apenas assuntos realmente intransferíveis para o governo central, como definir uma taxa básica de juros, administrar uma taxa razoável de inflação, e executar as políticas cambiais, monetárias e fiscais quando necessárias. Muitos desses avanços não foram feitos pelos keynesianos da época de Keynes, mas sim pelos ordoliberais de Freiburg. Somente na década de 70 é que começaremos a ver os keynesianos caminharem para essas mesmas descobertas com os “novos keynesianos”, que como disse com boa razão Leandro Roque neste artigo do Instituto Mises (Sim, eu perco tempo lendo artigos do IMB e volta e meia acho coisa útil), são keynesianos ao sabor de Chicago. E muito do que utilizo de Keynes passa pela releitura deles.


Créditos a Reação Nacional pelas imagens.
Mas a visão liberal e moderna pouco subsidiária não era o único problema de Keynes, outro problema era sua ética de fundo utilitária. Keynes era um racionalista e recebeu muitas influências de John Stuart Mill. Isso fez com que o mesmo fizesse julgamentos éticos duvidosos em matéria econômica, e o próprio economicismo que a atividade de economista suscita reforça esses dogmas utilitários. Logo, o uso sensato do ferramental científico que Keynes traz a tona demanda a impiedosa submissão a princípios morais católicos e, portanto, sãos.

Créditos a Reação Nacional pelas imagens
Mas... – você pergunta – Não nos bastaria simplesmente aderir ao distributismo, ao invés de se esforçar para arredondar autores heterodoxos? E eu respondo: Não. 

O distributismo é muito mais uma filosofia econômica do que uma teoria científica da economia. Chesterton não fazia uso de modelos matemáticos, não tinha proposições testáveis, não tinha uma microeconomia sistematizada e nem uma macroeconomia coerente. A melhor tentativa que vi de racionalizar o distributismo foi feita pelo professor de teologia e economia da Universidade de Dallas, John Médaille no seu livro “Toward a trully free market” e, em menor escala, por E.F. Schumacher em “Small is beautiful”. E posso lhes garantir que já aplico muito do que eles ensinaram e propuseram em suas teorizações distributistas nos textos que escrevo. Aliás, para fazer com sucesso essa empreitada, os mesmos tiveram de recorrer a modelos keynesianos e neoclássicos muitas vezes. Em conversa privada com o professor Médaille certa vez, ele mesmo reconheceu que bebeu muito da fonte de influências dos pós-keynesianos. Surpreso? Eu não. A crítica dele do mercado de trabalho é totalmente pós-keynesiana, mas submetida a uma ética católica verdadeiramente evangélica. É assim que se corrigem os erros de Keynes. E o mesmo pode ser feito, caso algum leitor tenda mais ao liberalismo, com os autores liberais clássicos. Aliás, boa parte do trabalho já foi feita pelos ordoliberais, cabe a nós aprimorar, como mencionei na minha ideia de Economia Moral de Mercado.

Esta, portanto é a diferença entre o que eu faço – curvando a razão a fé, como propõe a doutrina de sempre da Igreja – e o que os ideólogos como Padre Sirico, Olavo de Carvalho, Thomas Woods Jr, Adolpho Lindemberg e/ou Jeffrey Tucker fazem.

O sacerdócio em Santo Tomás de Aquino

Pe. Mário Sérgio Sperche, EP
Para São Tomás, o termo sacerdote proveniente de sacra dans, “o que dá o sagrado”, define a essência presbiteral, por se coadunar com suas duas funções principais: “primeiro, tem por missão comunicar ao povo as coisas sagradas que recebe de Deus, portanto, exercer a função de oráculo transmitindo a Palavra de Deus; segundo, sua própria pessoa está dedicada “à mais sagrada de todas as coisas, o culto divino”. O
 Doutor Angélico considera-o como “instrumento da misericórdia e da justiça divina, às vezes, das leis humanas”. Onde se entrevê o seu aspecto real. E acrescenta: “Os sacerdotes são os embaixadores e intérpretes para todas as instruções doutrinárias e morais, que apraz a Deus comunicar aos homens”[1]. Dir-se-ia que o sacerdote em seus três ministérios, está fundamentado embora não explicitamente nesta afirmação tomista.
O sacerdote age in persona Christi capitis, pois, como foi dito, no novo Testamento existe apenas um sacerdote: Jesus Cristo, o agente principal dos sacramentos e do culto cristão. Daí procede toda a dignidade sacerdotal. Dir-se-ia que o sacerdote empresta sua laringe para Cristo perdoar os pecados e consagrar a hóstia na Missa, supremo ato sacrifical[2].
O Ministro principal, o Ministro de Excelência da Igreja é o próprio Cristo. Jesus Cristo é o único sacerdote, e, portanto, todas as cerimônias do Antigo Testamento cederam lugar aos ritos instituídos e operados por Ele através do ministro secundário[3].
Em São Tomás a mediação se dá não somente no sacrifício, mas também na Palavra como “oráculo transmitindo a Palavra de Deus”, ou ainda como “embaixadores e intérpretes” das leis divinas. Esta é a essência do sacerdócio católico. Hugo Rahner recorda que esta “mediação”, que é “essência do sacerdócio”, se ordena tanto ao culto quanto à pregação[4]. Frei Antonio Royo Marín ressalta que estas funções estão fundamentadas no sacramento da ordem, pois, “o presbiterado constitui um verdadeiro sacramento, que imprime na alma um caráter indelével”[5].

[1] S. Th. 3, q.22, a.1, a.2 In: AQUINAS.
[2] S. Th. 3, q.82, a. 1. Resp.
[3] S. Th. 3, q. 71, a. 4.
[4] RAHNER, Teología dela pregación. Buenos Aires: Plantin, 1950, p. 225.
[5] ROYO MARÍN, Antonio. Teología

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O que é a nação? O patriotismo verdadeiro e o patriotismo falso da era Bolsonaro.



Assisto ainda atônito ao estelionato eleitoral promovido por Bolsonaro. O mesmo nomeou hoje (19 de novembro de 2018) Roberto Castello Branco para a presidência da Petrobrás. Castello Branco era um desses que defendia que a Petrobrás não devia nem ter existido. Ele defende a privatização da estatal a qual agora controlará. Por que um homem desses foi posto a comandá-la? Penso eu, para o óbvio, para que ela seja tão depreciada quanto possível, a ponto de que não sobre outra alternativa senão entregá-la ao mercado financeiro internacional... Isto é aos Rothschild, a George Soros e aos irmãos Koch.

Se a palavra patriotismo significa seguir bovinamente liberais destruidores do país, se a palavra patriotismo significa prestar contas a um guru filosófico na Virgínia, que odeia o Brasil e tudo o que ele é, se patriotismo significa copiar de modo simiesco cada ação da política externa norte-americana, como fosse o caminho da salvação, então como definir o que eu sinto pelo país? É curioso que, Bolsonaro, cioso quanto a aprovação do mercado financeiro, não usou o termo nacionalista para se descrever durante a campanha, mas sim patriota.

No texto predecessor desse fiz uma saudação ao patriotismo tal como entendido por Gustavo Corção, do qual sou adepto por ser a justa forma de amar e honrar a nação. Entretanto, questionei se o dia que Corção tanto temeu, o dia em que a palavra patriotismo perderia tão completamente o seu significado, a ponto de que nos veríamos forçados a se declarar nacionalistas, não havia finalmente chegado? Eu acredito que sim, dado o que temos visto nesse proto-governo. Então, para distinguir dos experimentos pervertidos dos últimos séculos e, em especial, do último, criei uma nova distinção: O nacionalismo sadio, que é o bom e velho patriotismo. E o nacionalismo pagão, tais como o nazismo, o fascismo e outros "ismos".

Seja como for, o verdadeiro sentimento patriótico, ou ainda como propus, um nacionalismo são, sadio e cristão, não poderia jamais entender a nação como uma extensão do Estado. Mas sim a razão pela qual o próprio Estado existe, para protegê-la, guiá-la e defendê-la. Busco aqui Maritain (1959, p.14) para uma definição filosófica sensata do que seria uma nação.
"Uma nação é uma comunidade de pessoas que se tornaram conscientes de si mesmas, a medida em que a história as foi formando, que preservam como um tesouro o seu próprio passado, que se unem a si mesmas segundo creem ou imaginam ser, com uma certa introversão inevitável. [...] A nação tem, ou teve, um solo, uma terra - o que não significa, como se dá com o Estado, uma área territorial de poder e administração, mas um berço de vida, trabalho, sofrimento e sonhos."
O sadio nacionalismo visa preservar e defender essas pessoas, essas histórias e essas tradições, ainda que a custa dos próprios do corpo político estatal, ainda que a custa do próprio Estado. Contudo, vivemos num mundo instável, perigoso, e que vem assistindo os estados nacionais sendo derrubados e abocanhados um-a-um, ou pelo poder imperial dos Estados Unidos e seus aliados, ou pelos poderes supranacionais da ONU, do FMI, do BIRD, da OTAN e da União Européia. Logo, os avanços do globalismo e do internacionalismo do super-capitalismo contemporâneo, que tem no mercado financeiro internacional o seu braço econômico e no poder militar americano e da OTAN o seu braço militar, não podem ser contrapostos pela privataria, pela submissão geopolítica a política externa americana ou russa, ou ainda, pelo desmantelamento de bens que, por mais que mal administrados pela classe política, pertencem ao Estado brasileiro e, portanto, ao povo brasileiro.

A nação é, segundo o neotomista francês (1959, p.15), uma "comunidade de comunidades", a nação são as pessoas reais, concretas, nas suas situações históricas e existenciais mais palpáveis, e a defesa delas necessita hoje, mais do que nunca, que asseguremos que certos bens continuem pertencendo ao Estado. Que as forças armadas sejam revitalizadas e o orçamento militar ampliada e, especialmente, que o país volte a ter uma política externa independente. Deixamos de ter um projeto nacional de desenvolvimento. Deixamos de imaginar o país que gostaríamos de ser no futuro. Resumimos-nos, ao contrário, durante a república tucano-petista a projetos de poder partidários. 

E hoje? Hoje vemos aí, o governo títere de Bolsonaro, comandado pela banca internacional, com um time de ministros do mercado financeiro, e seguindo como se gado fosse as orientações da política externa vindas de Washington ou de um filósofo panenteísta que mora na Virgínia, que por ocasião de seu americanismo solar de tão claro e evidente, confundem-se em seus objetivos. 

Voltando à ideia de nação, podemos dizer analogamente à própria natureza hilemórfica do homem que se o homem é forma e matéria, a civilização brasileira tem na nação a matéria sobre a qual se ergue uma sociedade política - esta sim, racional tal como é da essência do homem racional a vida política.
"A nação é "acéfala"; possui elites e centros de influência, mas não uma cabeça ou autoridade dirigente; possui estruturas, mas não uma forma racional ou uma organização jurídica; possui paixões e sonhos, mas não um bem comum" (MARITAIN, 1959, p.15)
Essas coisas que a nação não tem, são construídas racionalmente, constituem o que chamamos de sociedade política. A nação não existe independente da sociedade, assim como o corpo não subsiste independente da alma. Uma civilização assim como o ser humano só existe como a junção de ambas as coisas. É a sociedade política com seus corpos políticos que têm líderes, que tem cabeça, que tem sistema jurídico e que é responsável por guiar o povo e a nação a um bem comum. 

O que o governo Bolsonaro nos tem proposto? Levar-nos ao buraco em troca de umas poucas migalhas em termos de riqueza material nos curto prazo, ludibriando sua base direitista com algum justo cuidado com a moral pública. Mas do que adianta proteger a moralidade dos nossos filhos e netos, se não terão casa para morar? Se não terão futuro? Se se destrói o Estado, como preço, o órgão social que têm por função defendê-los? Não seria uma vitória de Pirro? É, por fim, um governo que não é preocupado com a nação, com a pátria de verdade, mas apenas com um emaranhado confuso de postulados ideológicos anti-esquerdistas totalmente irresponsáveis, oriundos de think tanks liberais, de um astrólogo maluco e de seitas neopentecostais que no fundo adorariam ver o Brasil se tornar o 52º estado da união política norte-americana.

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MARITAIN, Jacques. O homem e o Estado. Rio de Janeiro: Agir, 1959.