Páginas

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

A lei canônica como modelo para a lei estatal.


Pe. José Victorino de Andrade, EP



A lei proveniente do Estado tem o dever de atender ao bem estar e à ordem terrena. Porém, o homem é composto de corpo e alma, e por isso é necessária uma sociedade espiritual que o oriente para a eternidade: a Igreja. Uma sociedade, aliás, não meramente espiritual, mas também organizada hierarquicamente, terrena e visível. Não se deve, entretanto, considerar duas entidades, mas uma única realidade, conforme nos explica a Lumen Gentium “Da mesma forma que a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de salvação, também a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo” (n. 8).
A fim de dirigir e governar os seus membros, esta também possui um conjunto de leis chamadas eclesiásticas ou canônicas. O seu estudo requer um anterior aprofundamento da lei em geral, na sua realidade e variedade, a fim de estabelecer as bases para um conhecimento mais profundo e preciso da sua aplicação e importância.
Uma abordagem do direito canônico, enquanto ordenamento eclesiástico, leva-nos a algumas considerações históricas e particulares. Em primeiro lugar, deve-se ter em conta que ele influenciou e inspirou grande parte dos sistemas legais vigentes no Ocidente. Se bem que em dado momento da História tivesse havido um certo retorno ao direito e à cultura greco-romana, sobretudo com o advento do Renascimento e a promoção e influência dos legistas junto às cortes, não há dúvida que o direito ocidental muito deve à Igreja:
O direito canônico foi o primeiro sistema legal moderno da Europa, e permitiu demonstrar que era possível compilar um corpo legal coerente e sofisticado a partir da miscelânea de estatutos, tradições e costumes locais frequentemente contraditórios com que tanto a Igreja como o Estado se confrontavam na Idade Média.1
Além de estar na origem do desenvolvimento legislativo do Ocidente, pertence aos fundamentos do moderno sistema jurídico, e do direito criminal, baseado de certa forma na teoria da reparação de Santo Anselmo e na moral cristã.2 Também Miguel Reale considera que
tanto no momento da elaboração da lei, como no da sua aplicação e interpretação, a Moral intervém de maneira decisiva, sendo certo também que certas regras jurídicas não têm outra justificação senão a decorrente de regras morais, as quais, por sua vez, se apoiam ‘em uma certa concepção religiosa do mundo’.3
Na medida em que o direito canônico ajudou a construir o moderno sistema legal, também hoje ele pode servir de referência pelas suas características e universalidade, iluminando e contribuindo com os demais legisladores e codificações legais.
______________
1. WOODS JR. Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009. p. 12. O autor desenvolve este tema no capítulo 10 deste mesmo livro, sobretudo nas páginas 205-208.
2. Cf. Ibidem, p. 221.
3. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 488.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

"Papa" Francisco: A raiz próxima da “nova” moral: o empirismo britânico

Créditos:http://salveregina.altervista.org/blog/arquivos/1543?doing_wp_cron=1542712876.1364009380340576171875
A filosofia sobre a qual se funda a nova moral de situação é remotamente aquela de Ockham e proximamente aquela do empirismo representado principalmente por Hobbes (†1679), segundo o qual tudo é matéria, mesmo a alma humana. O princípio e fundamento desta filosofia é o lucro pessoal e o egoismo, fonte do liberalismo politico e financeiro.
Um outro pensador sobre o qual se fundam os “neo-moralistas” é Locke (†1704), que é um puro sensista: o homem conhece apenas o sensível e não pode colher a essência das coisas materiais nem elevar-se ao transcendente e a lei objetiva e universal; as ideias e os conceitos são apenas “nomes” e não colhem a realidade que exprimem (nominalismo).
Também Berkeley (†1753), funda como todos os empiristas, as raízes do seu pensamento no nominalismo de Ockham (†1349), segundo o qual as ideias são puros nomes. Berkeley, antes de tudo, acentua o sensismo de Locke porque não aceita nem sequer o conhecimento sensível interno, mas se firma apenas nos sentidos externos. A realidade é material e coincide com a sensação que temos dessa (“esse est percipi/o ser consiste no ser conhecido pelos sentidos”).
Outro filósofo empirista é Hume (†1776), segundo o qual tudo aquilo que supera a experiência sensível não tem nenhum valor cognoscitivo. Ele nega de maneira categórica e total o princípio de causalidade (“um efeito deve ter uma causa”): isto que vulgarmente chamamos causa não produz o efeito, ma apenas o precede. Então, o efeito é “post hoc sed non propter hoc”.
Agora, se nos limitamos apenas a sensação, é claro que veremos um efeito depois do outro e não o nexo entre causa e efeito, porque não posso tocar com a mão a causalidade a produção do efeito. Todavia tal nexo, mesmo se não é experimentável sensivelmente, é inteligível e me forma uma ideia racional abstraindo-a do conhecimento sensível. Para Hume, ao invés, a causa é um puro nome (“nominalismo”) e normalmente precede o efeito, mas não de maneira constante e necessária, e sobretudo sem produzi-lo. Por exemplo, se chuto uma bola e essa corre, segundo a metafísica clássica e tomística o movimento da bola é efeito do chute que lhe dei, enquanto segundo Hume existe só uma sucessão opinável ou provável de movimentos sem que o primeiro influa sobre o outro. Assim, o pai não é causa do filho, o fogo não é causa da fumaça, o tiro não é causa do homicídio e, se um fenômeno (pai/tiro) até agora precedeu um outro fenômeno (filho/homicídio), é provável que o precederá também no futuro, mas não o causa, e então, em moral não existe o conceito de responsabilidade subjetiva.
Enfim, Stuart Mill (†1873) se baseia em Hume e reafirma que todo conhecimento humano se reduz a uma simples sensação. Ele nega todo valor a razão e se limita apenas a sensação e a indução experimental. Nega o princípio de causalidade e afirma que tal fenômeno (paternidade/punhalada) sucede normalmente outro (filiação/assassinato) sem causa-lo [28].
A moral de situação ou da conveniência pessoal, que é capricho e licença, é a conclusão prática do nominalismo e do iluminismo britânico e é a contradição radical da moral objetiva e natural.
-----
OBS: Leia também os seguintes artigos sobre Burke e o empirismo inglês:
Mais além de Burke e seu conservadorismo.
Uma heresia chamada conservadorismo.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Keynes: Uma crítica



Alguns irmãos podem achar que eu caio no mesmo erro dos católicos liberais ao fazer uso do ferramental técnico keynesiano para análise econômica, só que de sinal invertido. Enganam-se. Os católicos liberais distorcem a DSI, distorcem a doutrina da Igreja, e quando isso por si não basta, simplesmente ignoram o parecer da Igreja sobre assuntos temporais para aderir ao liberalismo. Seja pela via da distorção, seja pela via da “vista grossa”, o magistério se dobra perante a ideologia.

Nada poderia ser mais distante do que eu faço. Aquilo que há de errado em Keynes eu denuncio e renuncio. Por exemplo, Keynes acabou sendo tido por burocratizante e estatista mais pelos seus seguidores (muito dos quais distorceram a palavra do mesmo) do que pelo seu próprio parecer. Contudo, há alguma razão para se extrair isso do próprio Keynes.

Antes de qualquer coisa, Keynes era um autor moderno e liberal. A linha liberal de Keynes era o do liberalismo democrático e social, isto é, sacrifica-se a liberdade econômica em favor de uma economia de caráter “social”, para se preservar a democracia liberal. Keynes entendia que a instabilidade do laissez faire, somado com a extrema desigualdade de ganhos financeiros e renda, eram um convite à agitação violenta das massas, a radicalização e ao totalitarismo fascista e comunista. Sugiro aos interessados na vida de Keynes a biografia do mesmo, escrita por Robert Skidelski.

Por ser liberal, Keynes via o mundo e a sociedade dividida entre indivíduos e Estado, e não vendo mecanismos na própria sociedade (por conta de seus pressupostos errados) que pudessem parar a opressão econômica daqueles indivíduos que detinham a posse do fator capital, Keynes via no Estado a única forma de controlar esse poder. Mas essa opressão não era vista por Keynes apenas como abusos do patrão contra o empregado num clima de luta de classes. Aliás, Keynes não cria que essencialmente a luta de classes era inerente ao capitalismo, para ele os conflitos distributivos entre capital e trabalho se davam pela postura passiva do “Estado guarda noturno”, e a completa ausência de um enquadramento jurídico que definisse as justas atribuições de cada parte no que tange às relações laborais.

Keynes também desconfiava da racionalidade do capitalista, sua experiência no mercado financeiro e sua análise econômica foram capazes perceber que os indivíduos autocentrados buscando maximizar suas utilidades, acabavam por se atentar apenas aos fatores que lhe afetavam diretamente, e tomavam decisões com base nisso, ignorando que outros tantos faziam o mesmo. Assim, a decisão racional de um indivíduo, quando observado do ponto de vista macro das relações coletivas, eram nada racionais e pareciam-se mais com comportamento de bando e manada, ou seja, os animal spirits. Contra a irracionalidade e incerteza não quantificável que o futuro guarda, além das omissas posições políticas diante dos abusos laborais, que outra força poderia proteger uma sociedade atomizada, caótica, com indivíduos desiguais em poder perante um Estado passivo? Keynes não titubeou: o Estado. E como Keynes só via o Estado, creu genuinamente que tudo deveria partir dele.

Se Keynes não fosse um liberal filosófico, se ele tivesse tido a curiosidade genuína de estudar o magistério social da Igreja Católica, além de uma vasta gama de autores distributistas tais como Belloc, Chesterton, além dos carlistas, ele descobriria que no passado havia corpos intermediários na sociedade, com autonomia legislativa sobre seus membros, que poderiam suprir muitas das funções que Keynes passou ao Estado de modo muito mais eficiente. Por exemplo, as relações laborais poderiam muito bem ser regidas parte pelo Estado e parte pela autonomia legislativa de órgãos de classe cooperadas como as antigas corporações de ofício. Os ordo liberais de Freiburg, mais espertos, aprenderam com os erros de Keynes, e passaram a advogar o tripartismo. Órgãos de classe como sindicatos e associações patronais se uniriam mediadas pelo Estado para definir quais regras se aplicam.
Isso não significa, entretanto, que as leis trabalhistas, salário mínimo, política fiscal, política monetária e cambial, são erros que poderiam e deveriam apenas ser geridas pela sociedade, e que, portanto, Keynes estava totalmente errado. Ao contrário, a Igreja mesmo apoiou muitas dessas ideias partindo do Estado, o que faltava a Keynes era o princípio da subsidiariedade. O Estado pode e deve cuidar dessas coisas, mas não sozinho e nem ao mesmo tempo, mas sim de modo gradual e compartilhado, com atribuições de funções aos entes federados mais baixos como municípios e estados, bem como aos corpos políticos da própria sociedade como cooperativas, órgãos de classe, sindicatos, igrejas, etc.

Créditos a Reação Nacional pelas imagens
Assim, sobrariam apenas assuntos realmente intransferíveis para o governo central, como definir uma taxa básica de juros, administrar uma taxa razoável de inflação, e executar as políticas cambiais, monetárias e fiscais quando necessárias. Muitos desses avanços não foram feitos pelos keynesianos da época de Keynes, mas sim pelos ordoliberais de Freiburg. Somente na década de 70 é que começaremos a ver os keynesianos caminharem para essas mesmas descobertas com os “novos keynesianos”, que como disse com boa razão Leandro Roque neste artigo do Instituto Mises (Sim, eu perco tempo lendo artigos do IMB e volta e meia acho coisa útil), são keynesianos ao sabor de Chicago. E muito do que utilizo de Keynes passa pela releitura deles.


Créditos a Reação Nacional pelas imagens.
Mas a visão liberal e moderna pouco subsidiária não era o único problema de Keynes, outro problema era sua ética de fundo utilitária. Keynes era um racionalista e recebeu muitas influências de John Stuart Mill. Isso fez com que o mesmo fizesse julgamentos éticos duvidosos em matéria econômica, e o próprio economicismo que a atividade de economista suscita reforça esses dogmas utilitários. Logo, o uso sensato do ferramental científico que Keynes traz a tona demanda a impiedosa submissão a princípios morais católicos e, portanto, sãos.

Créditos a Reação Nacional pelas imagens
Mas... – você pergunta – Não nos bastaria simplesmente aderir ao distributismo, ao invés de se esforçar para arredondar autores heterodoxos? E eu respondo: Não. 

O distributismo é muito mais uma filosofia econômica do que uma teoria científica da economia. Chesterton não fazia uso de modelos matemáticos, não tinha proposições testáveis, não tinha uma microeconomia sistematizada e nem uma macroeconomia coerente. A melhor tentativa que vi de racionalizar o distributismo foi feita pelo professor de teologia e economia da Universidade de Dallas, John Médaille no seu livro “Toward a trully free market” e, em menor escala, por E.F. Schumacher em “Small is beautiful”. E posso lhes garantir que já aplico muito do que eles ensinaram e propuseram em suas teorizações distributistas nos textos que escrevo. Aliás, para fazer com sucesso essa empreitada, os mesmos tiveram de recorrer a modelos keynesianos e neoclássicos muitas vezes. Em conversa privada com o professor Médaille certa vez, ele mesmo reconheceu que bebeu muito da fonte de influências dos pós-keynesianos. Surpreso? Eu não. A crítica dele do mercado de trabalho é totalmente pós-keynesiana, mas submetida a uma ética católica verdadeiramente evangélica. É assim que se corrigem os erros de Keynes. E o mesmo pode ser feito, caso algum leitor tenda mais ao liberalismo, com os autores liberais clássicos. Aliás, boa parte do trabalho já foi feita pelos ordoliberais, cabe a nós aprimorar, como mencionei na minha ideia de Economia Moral de Mercado.

Esta, portanto é a diferença entre o que eu faço – curvando a razão a fé, como propõe a doutrina de sempre da Igreja – e o que os ideólogos como Padre Sirico, Olavo de Carvalho, Thomas Woods Jr, Adolpho Lindemberg e/ou Jeffrey Tucker fazem.

O sacerdócio em Santo Tomás de Aquino

Pe. Mário Sérgio Sperche, EP
Para São Tomás, o termo sacerdote proveniente de sacra dans, “o que dá o sagrado”, define a essência presbiteral, por se coadunar com suas duas funções principais: “primeiro, tem por missão comunicar ao povo as coisas sagradas que recebe de Deus, portanto, exercer a função de oráculo transmitindo a Palavra de Deus; segundo, sua própria pessoa está dedicada “à mais sagrada de todas as coisas, o culto divino”. O
 Doutor Angélico considera-o como “instrumento da misericórdia e da justiça divina, às vezes, das leis humanas”. Onde se entrevê o seu aspecto real. E acrescenta: “Os sacerdotes são os embaixadores e intérpretes para todas as instruções doutrinárias e morais, que apraz a Deus comunicar aos homens”[1]. Dir-se-ia que o sacerdote em seus três ministérios, está fundamentado embora não explicitamente nesta afirmação tomista.
O sacerdote age in persona Christi capitis, pois, como foi dito, no novo Testamento existe apenas um sacerdote: Jesus Cristo, o agente principal dos sacramentos e do culto cristão. Daí procede toda a dignidade sacerdotal. Dir-se-ia que o sacerdote empresta sua laringe para Cristo perdoar os pecados e consagrar a hóstia na Missa, supremo ato sacrifical[2].
O Ministro principal, o Ministro de Excelência da Igreja é o próprio Cristo. Jesus Cristo é o único sacerdote, e, portanto, todas as cerimônias do Antigo Testamento cederam lugar aos ritos instituídos e operados por Ele através do ministro secundário[3].
Em São Tomás a mediação se dá não somente no sacrifício, mas também na Palavra como “oráculo transmitindo a Palavra de Deus”, ou ainda como “embaixadores e intérpretes” das leis divinas. Esta é a essência do sacerdócio católico. Hugo Rahner recorda que esta “mediação”, que é “essência do sacerdócio”, se ordena tanto ao culto quanto à pregação[4]. Frei Antonio Royo Marín ressalta que estas funções estão fundamentadas no sacramento da ordem, pois, “o presbiterado constitui um verdadeiro sacramento, que imprime na alma um caráter indelével”[5].

[1] S. Th. 3, q.22, a.1, a.2 In: AQUINAS.
[2] S. Th. 3, q.82, a. 1. Resp.
[3] S. Th. 3, q. 71, a. 4.
[4] RAHNER, Teología dela pregación. Buenos Aires: Plantin, 1950, p. 225.
[5] ROYO MARÍN, Antonio. Teología

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O que é a nação? O patriotismo verdadeiro e o patriotismo falso da era Bolsonaro.



Assisto ainda atônito ao estelionato eleitoral promovido por Bolsonaro. O mesmo nomeou hoje (19 de novembro de 2018) Roberto Castello Branco para a presidência da Petrobrás. Castello Branco era um desses que defendia que a Petrobrás não devia nem ter existido. Ele defende a privatização da estatal a qual agora controlará. Por que um homem desses foi posto a comandá-la? Penso eu, para o óbvio, para que ela seja tão depreciada quanto possível, a ponto de que não sobre outra alternativa senão entregá-la ao mercado financeiro internacional... Isto é aos Rothschild, a George Soros e aos irmãos Koch.

Se a palavra patriotismo significa seguir bovinamente liberais destruidores do país, se a palavra patriotismo significa prestar contas a um guru filosófico na Virgínia, que odeia o Brasil e tudo o que ele é, se patriotismo significa copiar de modo simiesco cada ação da política externa norte-americana, como fosse o caminho da salvação, então como definir o que eu sinto pelo país? É curioso que, Bolsonaro, cioso quanto a aprovação do mercado financeiro, não usou o termo nacionalista para se descrever durante a campanha, mas sim patriota.

No texto predecessor desse fiz uma saudação ao patriotismo tal como entendido por Gustavo Corção, do qual sou adepto por ser a justa forma de amar e honrar a nação. Entretanto, questionei se o dia que Corção tanto temeu, o dia em que a palavra patriotismo perderia tão completamente o seu significado, a ponto de que nos veríamos forçados a se declarar nacionalistas, não havia finalmente chegado? Eu acredito que sim, dado o que temos visto nesse proto-governo. Então, para distinguir dos experimentos pervertidos dos últimos séculos e, em especial, do último, criei uma nova distinção: O nacionalismo sadio, que é o bom e velho patriotismo. E o nacionalismo pagão, tais como o nazismo, o fascismo e outros "ismos".

Seja como for, o verdadeiro sentimento patriótico, ou ainda como propus, um nacionalismo são, sadio e cristão, não poderia jamais entender a nação como uma extensão do Estado. Mas sim a razão pela qual o próprio Estado existe, para protegê-la, guiá-la e defendê-la. Busco aqui Maritain (1959, p.14) para uma definição filosófica sensata do que seria uma nação.
"Uma nação é uma comunidade de pessoas que se tornaram conscientes de si mesmas, a medida em que a história as foi formando, que preservam como um tesouro o seu próprio passado, que se unem a si mesmas segundo creem ou imaginam ser, com uma certa introversão inevitável. [...] A nação tem, ou teve, um solo, uma terra - o que não significa, como se dá com o Estado, uma área territorial de poder e administração, mas um berço de vida, trabalho, sofrimento e sonhos."
O sadio nacionalismo visa preservar e defender essas pessoas, essas histórias e essas tradições, ainda que a custa dos próprios do corpo político estatal, ainda que a custa do próprio Estado. Contudo, vivemos num mundo instável, perigoso, e que vem assistindo os estados nacionais sendo derrubados e abocanhados um-a-um, ou pelo poder imperial dos Estados Unidos e seus aliados, ou pelos poderes supranacionais da ONU, do FMI, do BIRD, da OTAN e da União Européia. Logo, os avanços do globalismo e do internacionalismo do super-capitalismo contemporâneo, que tem no mercado financeiro internacional o seu braço econômico e no poder militar americano e da OTAN o seu braço militar, não podem ser contrapostos pela privataria, pela submissão geopolítica a política externa americana ou russa, ou ainda, pelo desmantelamento de bens que, por mais que mal administrados pela classe política, pertencem ao Estado brasileiro e, portanto, ao povo brasileiro.

A nação é, segundo o neotomista francês (1959, p.15), uma "comunidade de comunidades", a nação são as pessoas reais, concretas, nas suas situações históricas e existenciais mais palpáveis, e a defesa delas necessita hoje, mais do que nunca, que asseguremos que certos bens continuem pertencendo ao Estado. Que as forças armadas sejam revitalizadas e o orçamento militar ampliada e, especialmente, que o país volte a ter uma política externa independente. Deixamos de ter um projeto nacional de desenvolvimento. Deixamos de imaginar o país que gostaríamos de ser no futuro. Resumimos-nos, ao contrário, durante a república tucano-petista a projetos de poder partidários. 

E hoje? Hoje vemos aí, o governo títere de Bolsonaro, comandado pela banca internacional, com um time de ministros do mercado financeiro, e seguindo como se gado fosse as orientações da política externa vindas de Washington ou de um filósofo panenteísta que mora na Virgínia, que por ocasião de seu americanismo solar de tão claro e evidente, confundem-se em seus objetivos. 

Voltando à ideia de nação, podemos dizer analogamente à própria natureza hilemórfica do homem que se o homem é forma e matéria, a civilização brasileira tem na nação a matéria sobre a qual se ergue uma sociedade política - esta sim, racional tal como é da essência do homem racional a vida política.
"A nação é "acéfala"; possui elites e centros de influência, mas não uma cabeça ou autoridade dirigente; possui estruturas, mas não uma forma racional ou uma organização jurídica; possui paixões e sonhos, mas não um bem comum" (MARITAIN, 1959, p.15)
Essas coisas que a nação não tem, são construídas racionalmente, constituem o que chamamos de sociedade política. A nação não existe independente da sociedade, assim como o corpo não subsiste independente da alma. Uma civilização assim como o ser humano só existe como a junção de ambas as coisas. É a sociedade política com seus corpos políticos que têm líderes, que tem cabeça, que tem sistema jurídico e que é responsável por guiar o povo e a nação a um bem comum. 

O que o governo Bolsonaro nos tem proposto? Levar-nos ao buraco em troca de umas poucas migalhas em termos de riqueza material nos curto prazo, ludibriando sua base direitista com algum justo cuidado com a moral pública. Mas do que adianta proteger a moralidade dos nossos filhos e netos, se não terão casa para morar? Se não terão futuro? Se se destrói o Estado, como preço, o órgão social que têm por função defendê-los? Não seria uma vitória de Pirro? É, por fim, um governo que não é preocupado com a nação, com a pátria de verdade, mas apenas com um emaranhado confuso de postulados ideológicos anti-esquerdistas totalmente irresponsáveis, oriundos de think tanks liberais, de um astrólogo maluco e de seitas neopentecostais que no fundo adorariam ver o Brasil se tornar o 52º estado da união política norte-americana.

----------------

MARITAIN, Jacques. O homem e o Estado. Rio de Janeiro: Agir, 1959.

domingo, 18 de novembro de 2018

Bolsonaro e o nacionalismo sadio ou patriotismo.


Gustavo Corção em 1957 escreveu a obra "Patriotismo e nacionalismo", condenando o último e elogiando o primeiro. A um olhar descuidado pode parecer que Corção fechou para sempre, para um católico as portas do nacionalismo. Penso ao contrário, acho que Corção entende mal alguns nacionalismos de seu tempo, justamente por ser um democrata cristão àquela altura, que na verdade tinham mais a ver com o tipo de patriotismo que ele defendia do que com os nacionalismos pagãos de Itália e Alemanha na segunda guerra.

Para Corção, a palavra nacionalismo poderia ser empregada em dois contextos, um ilegítimo e essencialmente mau e pervertido, e outro legítimo com alguns limites. Para ele, o nacionalismo era essencialmente um orgulho desvairado da nação, egoísta e ressentido, que afirma o país e o seu Estado em detrimento dos demais povos e orgulhos nacionais. No segundo sentido, o nacionalismo era o processo pelo qual o Estado assegurava a posse de bens e serviços através de um monopólio estatal, o que vez ou outra poderia ser justificado.

Para o autor, a verdadeira virtude não se encontrava no nacionalismo, mas sim no patriotismo, que consistiria num meio termo entre a perversão do sentimento de amor ao país, tornando-se mesquinho e totalitário, e o completo entreguismo apátrida, o internacionalismo ou o que conhecemos hoje como globalismo.

Contudo, embora concorde com Corção quanto a maior propriedade do termo patriotismo, passamos já para uma época em que seu significado se perdeu por completo, e de tão banalizado, passou a significar algo que não muito se distingue do entreguismo apátrida supracitado. Corção reconhecia essa possibilidade (1957, p.43):

"Em suma, se houve uma evolução semântica temos de aceitar o resultado do processo, e não vale a pena quebrar lanças para restaurar o valor antigo de uma palavra".

Assim, vê-se que para ele, caso o patriotismo perdesse seu significado, o termo nacionalismo seria justo. Todavia, em seu tempo, Corção (1957, p.43) via essa evolução semântica ainda como inconclusa, e que portanto, ainda era possível lutar pelo justo termo: "Não me parece, entretanto, que o processo evolutivo tenha chegado a um termo que nos obrigue a aceitar o novo sentido". Hoje, entretanto, 61 anos depois, a situação parece-me distinta. A palavra patriotismo virou, quando não mera retórica para enganar as massas ocultando os velhos adversários da fé católica, o liberalismo e o americanismo como vistos a céus claros na campanha de Bolsonaro, apenas a descrição de um estado subjetivo da psique, uma emoção e sentimento de orgulho perante símbolos e hinos nacionais. Ou seja, patriotismo virou o Maracanã cantando o hino a capella na Copa do Mundo. Só.

Quando se fala em nacionalismo, as pessoas, ao contrário, associam à defesa aguerrida da honra nacional, de sua história, tradição e valores. De seus heróis e mitos nacionais. De seus símbolos e hinos também, mas sobretudo, ao respeito e a busca pelo engrandecimento da mesma no plano das relações exteriores, da geopolítica (o palco das nações), mas a nível micro, da busca pela prosperidade moral e material das famílias e comunidades que compõem a nação. Em outras palavras, quer como cidadão privado ou homem público de Estado, nacionalismo passou a significar a luta e a busca pelo bem comum e pelo justo fim do povo que constitui a pátria, perante a história e a eternidade.

Vemos a distinção quando Bolsonaro usa durante a campanha jargões patrióticos, símbolos nacionais, orquestra as massas com camisas verde e amarelas da seleção e gritos de guerra, e na sequência presta continência a bandeira americana sem qualquer obrigação diplomática a isso, e promove a usura nomeando banqueiros para funções altamente relevantes de Estado, promove o discurso da liquidação do patrimônio do Estado nacional, privatizando e vendendo tudo aos americanos na bacia das almas, e permitindo que os neopentecostais e gnósticos coloquem o país numa posição bem desfavorável no teatro das nações, assumindo lado em conflitos que não são nossos como no mundo árabe (mudança da embaixada de Tel-Aviv para Jersualém) ou embarcando na guerra comercial com a China, nosso maior pareceiro comercial. 

Assim como a nação é um conjunto de comunidades, que por sua vez são constituídas por famílias; as nações coletivamente também têm parentescos. Uma dessas maiores demonstrações é a ideia de iberismo, lusitanidade ou hispanidade. Uma política patriota ou sadiamente nacionalista (no seu sentido contemporâneo), envolve um respeito e uma atenção caridosa aos países que compartilham conosco a mesma semente cultural, linguística, religiosa e histórica, tais como os países lusófonos espalhados pelo mundo, como Timor Leste, Angola, Moçambique, Cabo Verde, e a nossa amada pátria-mãe, Portugal. Ou ainda, aos nossos irmãos espanhóis, como os argentinos, venezuelanos, colombianos, uruguaios, mexicanos, e etc. A atenção a órgãos como CPLP e Mercosul são fundamentais para uma política francamente patriótica e, portanto, sadiamente nacionalista, para a resolução de nosso problemas políticos, econômicos e morais. 

Mas o que vimos foi o contrário, Paulo Guedes menosprezar o Mercosul. Vimos Bolsonaro nomear um gnóstico para o Itamaraty, a mando de Olavo de Carvalho, que sabidamente é uma pessoa que odeia o Brasil e os brasileiros mais do que tudo, e que vê na nossa americanização voluntária ou compulsória, a força que pode salvar os brasileiros de si mesmos, tornando-se menos brasileiros no processo. Isso para não voltar a tratar da "banqueirada" já mencionada anteriormente, espalhando a usura do Oiapóque ao Chuí.

O general Oswaldo Ferreira, um legítimo patriota e que me parece um nacionalista na tradição de Médici e Geisel, acabou excluído do governo por razões pessoais, mas sabe-se também que ele representa a ala do exército (como já mencionado acima) que se opõe ao liberalismo econômico e ao americanismo triunfante. Ao contrário, na sua monografia sobre os problemas energéticos e da exploração do petróleo na América Latina, feita com o intuito de adentrar ao Estado-maior, o mesmo recomenda que o Brasil estreite e aprofunde seus laços com os países latino-americanos. O que faz-se agora entretanto? Busca-se ajoelhar-se perante Israel e os Estados Unidos chorando por migalhas!

Créditos à Reação Nacional e a Eduardo Cruz
Curioso como ninguém percebe que o nacionalismo judaico e o nacionalismo americano têm um carácter materialista e desenraizado, o que faz com que a sua afirmação acabe por coincidir e depender necessariamente da destruição das nacionalidades alheias. Não são nacionalismos sadios, que como diria Corção, na pior das hipóteses, terminaria num "isolacionismo emburrado com laivos de indianismo". Ao contrário, o nacionalismo judaico e o americano são voltados para o imperialismo. Por isso defino-me em relação aos dois como um cético. Um americano-cético e um sio-cético.

Portanto, urge a necessidade de recuperar o termo nacionalismo para nós, pois o termo patriotismo tornou-se "tão outra coisa" e tão depreciado, que por fim das contas, quando não se refere apenas a "tremiliques" emotivos, refere-se mais a uma abordagem entreguista ou de enganação das massas. O verdadeiro e sadio nacionalismo, são, cristão, católico, luso-hipânico é precisamente o velho e esquecido patriotismo de Gustavo Corção. Mas distinto do nacionalismo violento, totalitário e pagão, ele se preocupa com pessoas, famílias, cidades, bairros e comunidades reais, concretas, e acima de tudo, respeita a dignidade da pessoa humana. Ele quer contribuir com a grandeza da nação contribuindo ao mesmo tempo com a grandeza da humanidade. Dando um sentido a história e as tradições do povo diante de Deus e da história.

Aprendamos com os erros do neoconservadorismo americanista e liberal, e construamos uma verdadeira reação nacional.

-----
REFERÊNCIAS:

CORÇÃO, Gustavo. Patriotismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito LTDA, 1957.

FERREIRA, Oswaldo. Energia elétrica e petróleo na América Latina. Rio de Janeiro: ESG, 1991.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Mais além de Burke e seu conservadorismo.



No artigo predecessor desse, eu expus que por detrás do pensamento burkeano existe sérias falhas. Existem, portanto, pontos de compatibilidade e divergência, como é o normal em qualquer autor.
Como elemento de pura razão prática, a mudança gradual e a prudência são elementos compatíveis, mas a filosofia de Burke em si, não se resume a isso, e, portanto, mesma não é adequada para um católico.
1     
     Primeiro porque ela é liberal e aceita o liberalismo. Como diz F. Dreyer: 

"   Burke's theory was orthodox Whiggism in the sense it was compatible with Loackean principles. Many of the Burke's most important pinciples were in fact lockean" [Burke's Politics - A Study in Whig Orthodoxy] – Para saber o grau de compatibilidade da doutrina católica e a doutrina de Locke, sugiro o artigo de Willian Frota (resenha) sobre a ideia de Liberdade..

2      Dreyer ainda aponta que para Stanlis, a base de Burke era eclética, não incluía só Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e os romanos; mas também influências da filosofia moderna. Como listei no primeiro texto, Hume foi de grande influência sobre Edmund Burke. Dreyer ainda aponta que em Natural Rights and History, Leo Strauss mostra que existem laivos de hegelianismo em Burke, embora sutis.

"Leo Strauss's Burke is part thomist and part hegelian" - [Burke's Politics - A Study in Whig Orthodoxy]

3   Burke, importa dizer, não tinha uma metafísica coerente. Ao passo em que o mesmo afirma a existência de formas essenciais, ele as vê presas a si próprias, sem conexão direta com o transcendente. Por isso, Leo Strauss aponta que sua teoria do belo é fechada em si e não tem ligações entre beleza e virtude, ou algum outro princípio transcendente recaindo numa apreciação meio kantiana, meio lockeana do mundo.



O próprio Pappins diz: "Burke is not a systematic philosopher". [The Metaphysics of Edmund Burke]

Retornnando ao ponto número 1, vemos ainda sobre os princípios liberais de Burke, pois como diz Leo Strauss: "Burke does not reject the view that all authority has its ultimate authority in the people or that all authority is ultimately derived from a compact of previously "uncovenanted" men."

Isto significa que para Burke a nação, como um todo orgânico entre as partes (famílias, comunidades, são soberanas; o que implica numa autonomia do temporal em face do eterno. Erro nesse ponto bem parecido com Maritain. Não é de se estranhar que Pappins tenha escolhido Maritain como seu principal tomista de comparação com Edmund Burke, tanto que Miguel Ayuso já chamara o francês de um conservantista involuntário em referência a Burke.

Todo poder vem supremamente de Deus, e através do povo é exercido, como ressalta Christopher Ferrara em “Liberty, the God that failed”. Outra evidência é dada por Pappins quando ele transcreve o próprio Burke: “our allegiance to our domicle, to our community, and to our nation are not to be obtained by a rational assent [...]but for our natural feelings and sentiments".

Burke nega assim que haja princípios perenes racionalmente inteligíveis que nos liguem a nossa terra e que nos indiquem o caminho da lealdade. Argumento próximo ao de Smith na teoria dos sentimentos morais. Burke afirma o sentimentalismo como a ligação, e não um dever metafísico, ou como ele diz, um "extolled princple". O mesmo por consequência ele afirma sobre os estados da sociedade. "Why? [...] its natural to be so affected". Ainda Pappins: "He is highly skeptical of the fruits of speculative inquiry, specially those which bear on the existing social conditions". Ele apenas reconhecia a hipótese de que isto poderia ter a ver com o próprio Deus. Novamente, uma autonomia do temporal exagerada frente a Deus. Para a teologia católica, a civitas/pólis é fruto de uma disponibilidade racional do homem. A sociedade política não é algo instintivo, como que animalesco, mas racional. É a razão que comanda os sentimentos, não o inverso.

Retornando ao ponto 2: O ecletismo do suposto escolasticismo de Burke se deve ao fato de que ele nunca leu diretamente os principais escolásticos medievais, exceto alguns tardios como Suárez. O próprio Pappin diz:

"Like Stanlis, Canavan willingly acknowledged the influence of Common Doctor on Burke, but he also admits that this influence is not directly cited by Burke. [...] The problem of the lack of evidence that Burke had direct acquaintance with Aquinas is taken on saquarely by Wilkins." [The Metaphysics of Edmund Burke]

E agora retornando ao ponto 3: Pappins diz que para Burke havia essencialmente nas coisas um princípio de mudança e de manutenção. Para a filosofia tomista, a mudança é material; pertence ao escopo da matéria e não da forma. Para Burke, substancial, estava na essência dos seres de tal forma, que a própria natureza espiritual estaria sujeita a ela.

"If any intelligible aspect of reality reveals iteslf to Burke is that of change and stability [...] That there is a structure that accomodates change (in itself a metaphysical princple)".

Uma coisa é dizer que a mudança é objeto da matéria, presente junto a forma do ser, outra é dizer que a essência do ser traz a necessidade da mudança, como se esta fosse um imperativo divino.

According to Saint Thomas, change is one of the subjects of natural science; it is its obiectus formali. This idea is derived from Aristotle and was well-known among mediaeval philosophers. Aquinas says: "Natural science studies natural things, things with an interior tendency to move and change”. 

Diz Dominika Serafinowicz em "Aquinas’ concept of change and its consequences for corporeal creatures".

A mudança nos seres metafísicos é de ser, potencia. Em Ente e essência, a substância dos seres incorpóreos é descrita como “forma + ser”; não tendo portando matéria nem seus acidentes. Mas os seres sensíveis são “forma + matéria + ser”; no qual a mudança não apenas é da ordem da potência do ser, mas da potência da matéria. E segundo a teologia católica a mudança da matéria era desejada até um certo ponto, não da sua forma presente decaída pelo pecado original.
Esse tipo de erro de Burke é uma das razões pela qual Dreyer e Strauss vê nele uma espécie de hegelianismo. "We all must obey the great law of change" It is the most powerful law of nature [...]" - Diz Burke apud Pappins.

Ou seja, a mudança não era uma possibilidade, era um dever moral derivado da própria essência das coisas; resistir as mudanças era sempre errado. Elas deviam ser acomodadas de modo a preservar as coisas. Por isso a postura do conservador é reativa, diferente da do reacionário. Burke, portanto, tem inúmeros pontos destoantes da fé católica e na melhor das hipóteses, é um autor subsidiário para o pensamento político. Tanto Pappins quanto Dreyer, inclusive, mencionam que Burke durante muito tempo foi visto como um autor utilitarista – confundido na visão deles – até que Leo Strauss teria resgatado sua visão jusnaturalista. Um jusnaturalismo já bastante influenciado pelo nominalismo e que fazia um meio-termo entre o jusracionalismo dos protestantes e o da escolástica decadente do século XV e XVI. Santo Tomás jamais seria confundido com tal coisa ou qualquer escolástico ortodoxo. 

Em outras palavras, se Burke foi confundido com tal coisa é porque a incoerência de seu pensamento dá muitas margens a leituras utilitaristas, especialmente de burkeanos modernos como Theodore Dalrymple, cujo melhor exemplo é o livro “Em defesa do preconceito”, ou o português João Pereira Coutinho em "As ideias conservadoras". Nas suas reflexões sobre a revolução francesa, Burke discorre enormemente sobre a utilidade da tradição e a vantagem dos preconceitos internalizados no povo. Ora, junte essa dubiedade e esse liberalismo com tais discursos, e não se teria outra coisa. 

No seu livro "Da direita tradicional a direita moderna", o professor César Ranquetat Júnior comprova ainda, que a abordagem conservadora, por pretender-se não ideológica, acaba abrindo espaço para um tipo de filosofia pragmática e, ás vezes, utilitária, o que faz o conservador recair num presentismo. A adesão pura e simples ao status quo, pela simples razão, acima já vista que a mudança é imparável, inevitável e até mesmo necessária, sendo a função do conservador ampará-la em sólidos fundamentos da experiência e da tradição, para que seus frutos sejam benéficos. Ora, o presente não é nada mais, nada menos, que o tempo. A história no seu ponto último. João Camilo de Oliveira Torres na "Interpretação da realidade brasileira", assim como João Pereira Coutinho, afirmam a ideologia como sendo uma adesão ao tempo, ou a um passado idílico ou a um futuro utópico. O conservador por rejeitar ambos - quer percebam os autores ou não - recaem no presentismo. Ora, o tradicionalista apela aos princípios, assim o faz também o reacionário e o regressista, e ao fazê-lo, liga-se a transcendência, ao Deus que ensina a palavra, o logos, a finte de toda a Tradição. O conservador não chega tão longe, dado que preso está no hic et nunc, no imanente. Assim, não percebe que o presente é apenas um aspecto que medeia o passado e o futuro, a aparência da tradição e o progresso. De tal forma que, em realidade, ao defender o presente, o conservador defende uma síntese instável de progressismo e tradição, que não tendo como se equilibrar sem decair numa das duas formas, converte-se assim (tal como o próprio conservador), num progressista muito gradual. O conservadorismo é um progressismo involuntário, prudente e realista, destoando do progressismo convencional, utópico porém pragmático.

Para finalizar, não custa lembrar que Burke também critica os exaltados ingleses do clube de Old Jewry pela sua visão radical, embora não discorde dos princípios? Que princípios? Os dos membros do clube, que eram cristãos protestantes calvinistas ou convertidos ao calvinismo vindos do judaísmo. O clube tinha esse nome, pois, ficava no coração financeiro de Londres, o antigo gueto, por isso o nome “Old Jewry”, ou velha judiagem.

sábado, 10 de novembro de 2018

A solução para os problemas sociais


Texto originalmente postado aqui


Pe. José Victorino de Andrade, EP
O mandamento novo (Jo 13, 34) foi capaz de criar aqueles fundamentos que lançaram as suas raízes na sociedade, que cresceu e se espalhou pelo ocidente. Talvez esta nova et vetera proposta seja em nossos dias a única capaz verdadeiramente de regenerar a sociedade, diante dos múltiplos desafios que a cercam. Corajosamente, lembrava João Paulo II na Centesimus annus: “não existe solução fora do Evangelho para a questão social” (AAS 83 [1991], p. 800).1
A Bíblia contém “valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade” (Verbum Domini, p. 177). Estes não estagnaram, mas pertencem à perene riqueza da mensagem evangélica, que deve resgatar os homens do seu ego para se voltarem ao alter. O próprio Jesus não se preocupou em ser servido, mas em “servir e dar a sua vida para redenção de muitos” (Mc 10, 45). Os seus ensinamentos contêm uma incomensurável universalidade espacial e temporal, própria a fazer crescer na verdade e na caridade, e a oferecer resposta aos anseios de todos os homens, tempos e nações.
A Sagrada Escritura é a inspiradora dos gestos concretos que tiram a Doutrina Social da Igreja do mero papel, transportando-a para a vida real e concreta dos homens, chamando o batizado a fazer-se, à semelhança de São Paulo, tudo para todos, por causa do Evangelho (I Cor 9, 22-23). Conforme Bento XVI na Verbum Domini, a Palavra deve iluminar “cada âmbito da humanidade: a família, a escola, a cultura, o trabalho, o tempo livre e os outros setores da vida social” (p. 155), proporcionando assim um encontro com o próprio Cristo, a conversão e a capacidade de florescer e edificar uma “humanidade nova” (p. 156).
__________________
1 “Quemadmodum fecit Leo Pontifex, oportet repetamus non esse extra Evangelium solutionem ‘quaestionis socialis’ at contra ‘res novas’ posse in eo suum veritatis spatium invenire rectamque moralem collocationem” (n. 5. Tradução minha da parte grifada). O Papa João Paulo II, afirma, ademais, a importância da Escritura para a “recta colocação moral” acerca das “coisas novas”, e o imprescindível anúncio da Doutrina Social da Igreja para a Nova Evangelização (AAS 83 [1991], p. 800).