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sábado, 27 de outubro de 2018

A raiz da inorgânica sociedade liberal


Estive por esses dias apreciando a obra "Mas alla de la oferta y la demanda" de Wilhelm Röpke, obra cujo título em inglês é "A Humane Economy". E lá pelas tantas, quase ao fim do livro, percebi um curioso paradoxo que o próprio Röpke não se deu conta. Enquanto o alemão criticava a universalidade do sistema de saúde inglês, ele elencou um grupo de medidas que tornariam no parecer dele, o sistema do NHS mais subsidiário. Não custa lembrar que Röpke, um luterano, era uma curiosa fusão de Maritain e Edmund Burke.
Diz o ordoliberal na página 219:
En la mayoria de los casos es tan agudo, que es preciso esforzarse por normalizarlo, através de los seguientes procedimientos: primero, limitando el seguro obligatorio de enfermidad a aquellas esferas para las cuales el riesgo constituye realmente una pesada carga y a las cuales dificilmente podria convencérseles para que se asegurasen voluntariamente; en segundo lugar, favoreciendo las infinitas formas de asistencia médica descentralizadas, de las cuales puede servir Suiza como muestra; y en tercer término,mediante la introducción de una notable participación própia, de la cual puede restarse sin dificultad todos los inconvenientes del caso particular.
Ora, para estabelecer tais procedimentos, ao invés de se simplificar o sistema, tornar-se-ia ele ainda mais burocrático. A medida 1 e a medida 3, por exemplo, demandaria que o Estado, através dos mecanismos do imposto de renda, separasse a população em função da renda, escalonando-as em quem pode usar os serviços e quanto deve pagar (ou se não deve pagar pelo serviço), e quem seria obrigado a contratar um serviço privado ou não. Isso demandaria uma rede de fiscalização cartorial, verdadeiros "pentes finos" periódicos para evitar fraudes, bem como uma tremenda papelada. O segundo ponto demandaria uma rede de fiscais de contratos com clínicas e hospitais particulares, para ver a licitude e probidade na gestão dos contratos, bem como fiscalizar a qualidade do atendimento.

Em outras palavras, longe de fazer o sistema mais orgânico, a subsidiariedade tornaria-o mais burocrático. Um sistema universalizado, na verdade, exigira apenas a burocracia da gestão dos hospitais, clínicas e serviços, dispensando toda a parafernalha burocrática de classificação por renda, recebimento de parcelas, etc. Em outras palavras, na sociedade liberal, em alguns casos a aplicação de medidas de subsidiariedade tornam o sistema mais inorgânico.

Por que este paradoxo? A razão é simples, e sem perceber, o próprio Röpke a descreve no capitulo 1 do livro. Vivemos numa sociedade de massa que só foi possível pelo advento do capitalismo liberal. As sociedades do antigo regime e medieval eram personalistas, o senhor feudal conhecia o servo da gleba, sua família e suas necessidades, bem como o rei conhecia seus nobres e suas necessidades. Assim, o sistema era subsidiário e orgânico,e isso era possível porque o capital e o trabalho, quer no campo, quer nos burgos, através das guildas não estavam totalmente separados.

Com a radical separação entre capital e trabalho diagnosticada por G.K. Chesterton e Hillaire Belloc, ainda com a dissolução das guildas e o cercamento dos campos (privatização das terras comunais), aliado a uma produção em massa, surge necessariamente uma sociedade de massas. Os produtos do trabalho humano (e não apenas o próprio trabalho em si), deixam de ser uma vocatio (vocação) como dizia Weaver, para ser uma espece de tarefa inglória. As roupas antes feitas para alguém por um alfaiate, com as preferências pessoais de uma pessoa específica, agora tornam-se roupas padronizadas, com logos, dizeres, desenhos das grandes marcas.

As próprias relações laborais não mais se dão entre um senhor que conhece seu súdito, mas sim entre o patrão e uma massa de proletários sem rosto, aos quais ele desconhece a maioria e com alto grau de rotatividade no posto, dado que a produtividade marginal do trabalho individual de um funcionário não é muito diferente da de outro. É justamente por isso que as leis trabalhistas são demandadas, para impedir que desse relacionamento sem face, surjam abusos. Inclusive, dizem alguns psicólogos, que é muito mais fácil matar alguém se você não ver o rosto da pessoa.

Se para ganhar o pão é necessário burocracia para humanizar as coisas, por que não seria no atendimento médico? Outro dado curioso. A burocratização de certos setores, ao diminuir a rotatividade dos postos de trabalho, forçam o patrão a investir na produtividade do funcionário com cursos técnicos e profissionalizantes, e por acostumar-se com a mesma pessoa por anos a fio na mesma empresa, isso leva, por vezes, o patrão a conhecer melhor seu trabalhador. Em outras palavras, nem sempre a burocracia joga contra a organicidade das relações sociais.

É óbvio que o princípio da subsidiariedade deve ser atendido, mas somente quando ser subsidiário significa ser mais orgânico - e isso atende claramente a DSI. Em alguns casos, ser subsidiário significa apenas ser liberal, burocrático e racionalista e não personalista. Aliás, o próprio Papa João XXIII o diz na encíclica Mater et Magistra: Que se a socialização de serviços significar menos fiscalismos rigoristas, ela é desejável.