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sexta-feira, 1 de abril de 2016

O Liberalismo, por Perillo Gomes

O texto a seguir é um excerto da obra de Perillo Gomes, "O liberalismo", escrito em 1933. O autor, um renomado conservador católico de seu tempo, escreveu e atuou por muitos anos no Centro Dom Vital ao lado de outros grandes conservadores brasileiros como Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima, Jackson de Figueiredo e outros. Na transcrição trouxe o texto para as normas ortográficas vigentes.

OBS: Se um dia liberal foi a palavra-gatilho que todos queriam ser, hoje ou pelo menos, até pouco tempo atrás, esquerdista todos queriam ser.
NdT = Nota do transcritor
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Liberal é o termo de maior prestígio em nosso meio. Para muitos ele define o nosso carácter, o espírito das nossas instituições, no Império e na República. Por sua causa somos capazes de todos os extravasamentos de sensibilidade, do entusiasmo à indignação ou aos acessos de ternura feminina. Liberal é sem dúvida a palavra de maior cotação de nosso vocabulário. Tudo se pode dizer impunemente de um homem público no Brasil. Muitos são insensíveis ao insulto. Alguns indiferentes a lisonja. Nenhum, porém, a sangue frio, suporta a acusação de não ser liberal.

Deste modo, neste país, são liberais o governo e a oposição, a lei que escorcha o contribuinte e o cidadão que sonega o imposto ao Estado. O cientista, o literato, o militar, os financistas, os poetas, os demagogos, os investigadores de polícia, honrados comerciantes desta praça, em suma, todo mundo é liberal.

Certa vez em pleno Senado da República, um jovem licurgo arriscou uma frase imprudente: declarou que no mundo moderno não havia mais lugar para os liberais. Foi este um dia tempestuoso na câmara alta. Todas as fisionomias, de súbito, se fecharam. Houve um momento grave de concentração, desses que pronunciam os grandes acontecimentos e, a seguir, uma violenta explosão de protestos indignados. Felizmente ainda a tempo interviram pessoas cautelosas. E o jovem senador veio à tribuna para dar uma explicação reconciliadora: ele dissera que não havia mais lugar para os liberais porque os liberais já se tinham apossado de todos os lugares! Houve aplausos nas galerias, emoção no recinto e o orador foi cumprimentado...

Não seria fácil encontrar senão motivos psicológicos para explicar a nossa fascinação com o vocábulo liberal. O Padre At, a propósito da liberdade, fez a seguinte reflexão, que tanto agradou a Pierre Christian: Nous nous chargeons, sans talisman, dé degriser les trois quarts des démocrates de leru engouement pour la liberté, le moyen est très simple, c'est la definition même de la liberté."

Ora, esta reflexão se aplica á merveile, ao nosso caso. Nós somos liberais, na generalidade, sem termos tentado sequer, um esforço para definir a palavra que tanto nos seduz, isto é, sem indagarmos da natureza das ideias que ela implica, de onde se originam essas ideias e que especie de consequências podem autorizar.

De que isso não é mera suposição, basta-nos dizer que, praticamente, tomando como campo de observação, para exemplificar, o meio político, não há diferença essencial na ação dos nossos homens de Estado. Com efeito os mais comprometidos com a opinião pública, no período da sua doutrinação, pelo sustentáculo do programa liberal, nas promessas de acatamento a todas as liberdades, uma vez investidos do mando pouco diferem dos que são apontados à ira da populaça sob a injuriosa alcunha de reacionários. Tentar uma definição do termo liberal, no seu sentido filosófico, depois do exposto, é uma necessidade, mesmo porque estamos certos de que a sua voga se funda, principalmente na ideia imprecisa que, em geral, existe  seu respeito.

Liberal é um adjetivo. Significa a qualidade do que, do ponto de vista das ideias aceitou os princípios do liberalismo. De modo que em ultima análise, a definição que interessa é a do liberalismo. Vejamos a que nos propõe Dom Felix Sarde y Salvany: "Na ordem das ideias, o liberalismo é o conjunto do que se chama princípios liberais."
Os princípios liberais são: a soberania absoluta do indivíduo, a soberania absoluta da sociedade, a soberania nacional, a liberdade absoluta de imprensa e a liberdade absoluta de associação.

A esse conjunto de liberdades se dá também o nome de liberdades modernas. Se se quiser investigar um pouco mais o assunto, na questão de nomenclatura, pode-se verificar que essas liberdades foram por Pio IX catalogadas no Syllabus errorum sob o rótulo de erros modernos. Conservemos contudo, para não maltratar demasiadamente a sensibilidade indígena, a classificação amável de liberdades modernas. Essas liberdades em substância, são modalidades de um programa radical de emancipação do homem. 

O homem nasce livre. E é originariamente bom. A sociedade é o que o perverte e o degrada. Deste modo justo é que se liberte de tudo, de todos os laços políticos, históricos, religiosos, sentimentais, inclusive os que se prendem aos seus ascendentes e à sua prole, e o solidarizam com qualquer instituição corporativa, histórica ou política que possa limitar a sua liberdade. 

Tratando das suas origens, Pio IX é categórico no Syllabus, na infomação que nos dá: essas liberdades provem de teses fundamentais da revolução luterana e propagaram-se pelo mundo graças aos pseudo-filósofos da enciclopédia no século XVIII e triunfaram com a revolução francesa. Se desejar investigar sua origem mais remota chegar-se-á ao ponto inicial de todas as negações e de todas as revoltas: o grito de soberba de um anjo rebelado.

O que caracteriza, com efeito, essas liberdades é a revolta. revolta do indivíduo contra a autoridade de Deus e de toda influência disciplinadora do seu pensamento e dos seus apetites; revolta da sociedade contra toda limitação em nome das realidades de ordem transcendente. e de direitos extra-naturais. Anarquia, portanto, das consciências, desordem política e despotismo: Em conclusão: bolchevismo. Ao menos por definição existem duas formulas de liberalismo: um radical e um moderado. O radical não só afirma a inteira, a absoluta independência do homem e da sociedade em relação a tudo que está fora de si mesmo, como incita que se combata toda influência natural ou sobrenatural tendente a limitar a sua expansão.

O liberalismo radical é ostensivamente ateu, anticlerical, demagógico e revolucionário. Como expressão política proclama a supremacia do estado sobre o indivíduo e as corporações de qualquer natureza. O liberalismo moderado (NdT: ou conservador) tenta uma fórmula de conciliação entre os princípios do liberalismo radical e a coexistência do sobrenatural, determinando na vida do homem um dualismo fundamental: de um lado as atividades da fé e de outro as cognoscitivas, cívicas, utilitárias, etc. A razão, portanto, nada tem a ver com a revelação; os dois planos da vida, o natural e o sobrenatural são independentes entre si, como dois departamentos estanques.

Sua fórmula política é a igualdade entre os poderes espirituais e temporais, essa pretensa igualdade em si mesmo já é uma heresia. Não é possível nivelar a vida religiosa, que interessa a vida futura do homem - sua vida verdadeira -  àquela a que estão confiados apenas os seus interesses imediatos, tangíveis, transitórios. Além disso essa declaração de igualdade é puramente teórica, não corresponde à realidade, porque não podendo existir dois poderes autônomos, absolutos, interessando ao mesmo indivíduo, daí resulta que na prática o Estado, sob alegação de que lhe cabe a função de mantenedor da ordem, impõe a Igreja as soluções que bem lhe parecem. Daí os conflitos que se verificam entre a Igreja e as liberdades modernas.

Esse conflito está na lógica mesma dos princípios que a Igreja e as referidas liberdades representam. A Igreja pugna pela mais intolerante das verdades: a verdade religiosa. O liberalismo desconhece ou opõe-se a existência dessa verdade. A Igreja põe Deus como fundamento e alvo dos nossos atos. O liberalismo parte da negação de Deus ou da indiferença religiosa para concluir pela felicidade puramente temporal do indivíduo ou da sociedade. A Igreja subordina o homem e a sociedade a Deus. O liberalismo pretende subtrair ao homem e a sociedade o Império do Criador. Um conflito de princípios não pode se restringir a um campo teórico, necessariamente tende a se objetivar.

De modo que a oposição dos princípios que informam a doutrina católica e a doutrina liberal, gera fatalmente a luta em que duas forças se degladiam. Constitui mesmo a história de todas as contendas presentes, passadas e futuras da sociedade. Proudhon não pode ocultar que no fundo de todas as disputas políticas exite uma questão teológica. Com efeito, tudo quanto pretende fornecer ao homem norma de conduta e conduzi-lo para um ideal de amor, de paz, de glória ou de felicidade, tudo, direta ou indiretamente, vai atingir a Igreja na sua doutrina e no seu apostolado. 

Compreende-se porque as chamadas  liberdades modernas favorecem todas as liberdades com exclusão das liberdades católicas.