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terça-feira, 15 de janeiro de 2019

O “dasein” hipster é liberal-conservador



Uma perspectiva verdadeiramente regressista passa pela crítica da cultura pop moderna. E isso não se pode fazer sem criticar aquela coisa agarrada na nossa garganta e que não desce nem debaixo de muita porrada. O hipster.

A cultura hipster é vista pelos conservadores brasileiros como algo essencialmente progressista. Deve ser, talvez, devido ao fato de que, COM exceção das grandes cidades, ela não pegou aqui com tanta força. Aqui o padrão é o sucesso. E tribos e subgrupos urbanos embora existam são sempre vistos como estrambóticos até pelos próprios integrantes que, em geral, entendem que o padrão é o normal e que no fundo eles têm mesmo é razão.

Mas nos EUA a coisa não é bem assim. Quero dizer, a cultura hipster é essencialmente progressista e compartilhada e vestida por pessoas consideradas progressistas. Mas há algo de distinto nisso. Ela faz enorme sucesso e é quase o novo padrão em grandes cidades. Não raro num metrô você vê vários tipos assim ao lado do que outrora era o padrão, enquanto no Brasil é meia dúzia de malucos.

Isto é particularmente curioso, porque algo progressista não quer dizer apenas respeito a opiniões subjetivas, mas sim a algo de mudança realmente estrutural na sociedade. Isto é, para fora da nossa mente existe um mundo, uma sociedade que tem determinadas características que devem ser mudadas. O hipster em geral não se opõe a essas mudanças, mas é muito raro vê-lo como uma espécie de ponta de lança nesses movimentos transformadores. Ele é um progressista passivo, ou ainda, em palavras mais gentis, um progressista subjetivo. E é nisso que reside seu liberal-conservadorismo. Paradoxal? Veremos mais adiante que não. O que há por detrás desse tipo de mentalidade filosoficamente falando? Vamos primeiro a uma definição de hipster antes de prosseguir.
O hipster ou pelo menos a cultura hipster trata-se da rejeição e quebra de padrões e afirmação de individualidade. Contudo, essa definição tende a ser problemática por uma questão metalinguística. 
A definição padroniza. Ela diz o que é, cria padrões reconhecíveis, essências e, portanto, o hipster teria de necessariamente de rejeitá-las também. Assim, o hipsterismo seria um padrão de comportamento, não uma doutrina ou ideologia, mas um tipo de sensação e de forma de agir, de ser, um novo dasein duginiano urbano. Mas não se engane, o aparente relativismo do hipster é perfeitamente abarcado pela modernidade e pelo conservadorismo, pois o conservador é um moderno moderado, ou como gostam de dizer, prudente. Ora, o conservadorismo rejeita-se enquanto doutrina da mesmíssima forma, e afirma-se como uma conduta existencial e uma forma de ser. Temos uma coincidência aqui que poderemos aprofundar depois, pois seria demasiado ingênuo afirmar só por isso e por uma constatação tão simplória dessas de que “logo, é conservador”.
Mas, diferentemente desses existencialismos capengas que por vezes se encontram em filosofias conservadoras, eu acredito no poder da razão ordenada e na sua capacidade de, em reconhecendo os padrões, identificar as essências e classificá-las (deve ser por isso que eu sou muito mainstream). O curioso é que a própria cultura padrão (ou mainstream) também pode receber esse mesmo tipo de qualidade. Ninguém tem uma doutrina em mente quando deseja se vestir com as roupas que são considerados o básico da sociedade em sua época, ele está apenas externando uma forma de ser de seu tempo e de seu lugar no espaço. É algo meramente automático. Por ser tão claro e cristalino é visível que há nisso um conservadorismo. Mas o aspecto conservador do hipster tem uma certa consciência de si maior, não é uma mera resposta por automatismo, é uma forma de afirmação de se estar numa sociedade liberal-democrática e de afirmar os princípios da mesma.
Dom Marcel Lefevbre demonstra que o ponto de partida do liberalismo é uma dissonância epistemológica, o subjetivismo, que não se conformando com o mundo a sua volta tende a querer editá-lo. Um dos frutos do subjetivismo é o individualismo, através do qual o indivíduo muda a realidade ao invés de ser mudado por ele.
O hipster claramente é subjetivista, e ele afirma sua individualidade, como todo liberal. Ele faz isso de modo existencial e autocrítico. E isso é um outro aspecto de seu conservadorismo. O hipster entende que ele é subjetivamente único e incapaz de se amoldar e de se encaixar no padrão, ele prefere então se editar, se criticar, ao invés de criticar a sociedade como um todo. Por isso o hipster é alguém desconstruindo a si ao invés de desconstruindo o mundo. O hipster é de esquerda, mas isso é uma opinião dele que ninguém é obrigado a seguir. O hipster quer maior distribuição de renda, mas ele não quer forçar ninguém a pensar como ele. O hipster é um cliente assíduo das grandes marcas de roupa, de óculos, de chapéus, de perfumes e de restaurantes chiques ou cafeterias massificadas, símbolos da grande sociedade de consumo.
E isso é profundamente liberal, tal como a sociedade que o rodeia! O que o hipster tem é uma certa autoconsciência que ao ver o mundo padronizado do capitalismo liberal, das sociedades urbanas de massa, decide questionar a si próprio enquanto indivíduo do que questionar a lógica dessa sociedade em si. Assim, ser de esquerda subjetivamente, votar no Bernie Sanders, preocupar-se com os bichinhos da África são apenas formas de reforçar sua individualidade, dado que o homem comum, o “padrão”, está preocupado mais com trabalho, horário, família, cachorro e coisas mais prosaicas como por o lixo para fora. O comportamento hipster é uma fuga liberal para um esquerdismo meramente postiço como forma de demonstrar para si mesmo e para outros que ele é “diferentão”.
Um dos símbolos mais fortes do conservadorismo liberal do hipster é que ele sempre procura – como bom filho da cultura vintage – o anacronismo como forma de mudar seus hábitos e vestimentas. Procura-se o uso de palavras mais antigas, mistura-se elementos contemporâneos como tatuagens com penteados, roupas e óculos da década de 20, 30 ou até 40. Tudo isso de forma contrastante como um sinal de continuidade entre passado e futuro, como  alguém sempre no presente ou alguém atemporal. François Hartog, um filósofo pós-moderno da história chama a atenção para isso, como notam os também historiadores Júlio Bentivoglio e Patrícia Merlo (2014, p.23):
“Essa apropriação do passado pelo presente constitui aquilo que Hartog denominou presentismo. O revival, o vintage, o uso de estilos estéticos, linguagens e objetos do passado no presente são marcas desse presentismo e de crise desse regime moderno de história e historicidade”.
Mas de que crise falam os professores da UFES ao se referir a François Hartog? Apelando ao crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht (apud Merlo e Bentivoglio, 2014, p.24), ambos relacionam essa crise com o medo do futuro, pois conforme o próprio Hartog concordaria “o futuro reserva mais ameaças que exatamente promessas de felicidade e progresso”.
Extraordinário. O hipster é um descrente na ideologia do progresso!
O hipsterismo é simplesmente a conduta do homem moderno que, perdendo o sentido do progresso, temendo e desconfiando do futuro, afirma sua individualidade numa cultura e sociedade burguesa, de modo completamente condizente com ela, sem em nada realmente questioná-la. Em outras palavras, o ser hipster é o mesmo que ser um conservador da sociedade liberal com mais ênfase no liberal, mas sem, entretanto perder o seu aspecto conservador. Ele é diferente da mentalidade tradicional que enxerga o futuro como uma continuidade do passado e que é justificado por ele. Mentalidade esta que alguns conservadores um pouco mais inconformados com a modernidade tendem a tomar, mas ao contrário, o hipster ele exclui a historicidade de tudo, misturando o passado e o presente numa resposta prática e emocional ao medo do futuro e ao niilismo mais tacanho.
Lenin, este sim um verdadeiro progressista e revolucionário criticou essa conduta em partes como sendo a “doença infantil do comunismo”, pois na verdade guarda em seu ínterim um conservadorismo mal disfarçado entre os modos de ser da burguesia. Daí seu apreço a uma eterna belle époque, a uma revitalização do grupo Bloomsbury de onde vieram John Maynard Keynes, Virgínia Woolf, Bertrand Russel, George Bernard Shaw entre outros. O hipster é, nas palavras de Gilson Schwartz um “conservador autocrítico”, ou nas palavras de Keynes (apud Schwartz, 1986, p.44) membro da “burguesia instruída”. O hipster é individualista, niilista de um sentido para a história, afirma a tolerância como virtude, busca o anacronismo e um adepto da sociedade de consumo, das grandes redes de entretenimento, cliente fiel das praças de alimentação dos shoppings e, por fim, sempre virtualizado no facebook, no tumblr e no instagram. Ou você achou mesmo que a nova direita nasceu na internet e cool por acaso, achou?
No fim das contas, pelo subjetivismo mesmo do hipster, o que há de progressista no hipster é postiço, falso, e perfeitamente remodelável para uma conduta verdadeiramente conservadora caso o padrão seja mais progressista do que ele. Vide o caso dos novos conservadores brasileiros, que se vestem como austríacos da década de 20 e 30, com gravatas borboletas, fraques, usam chapéu bowler arredondado, fumam cachimbo e alguns até curtem um pince nez. Durante os anos do petismo, o padrão (mainstream) tornou-se tão progressista que o hipster amedrontado do futuro encontrou seu refúgio no conservadorismo que é, na verdade, a sua essência.
Por fim, retomando o raciocínio inicial, não é possível a criação de uma cultura verdadeiramente tradicional e regressista sem a demolição do aparente progressismo do hipster, que na verdade é apenas circunstancial e usada pelos conservadores para justificar-se como menos progressistas. O que está em xeque aqui é a modernidade que deve ser demolida.
REFERÊNCIAS
LEFEVBRE, Dom Marcel. Do liberalismo a apostasia – A tragédia conciliar. Niterói: Permanência, 2013.
SCHWARTZ, Gilson. John Maynard Keynes: um conservador autocrítico. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BENTIVOGLIO, Júlio; MERLO, Patrícia. Teoria e Metodologia da História: Fundamentos do conhecimento histórico e da historiografia. Vitória: Edufes, 2014.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O papel da Igreja e do Estado na educação contemporânea.


Há uma discussão velha, mas que ainda é relevante, sobretudo no que se refere a tempos como o presente em que se discute o papel do Estado e da Igreja na educação. E fica muitas vezes, o católico contudo, se se deve apoiar a educação estatal pelo seu custo diluído nos impostos que permite que todas as crianças (especialmente as mais pobres) tenham acesso ao ensino, ou se se deve apoiar modelos privados que levantam dúvidas as vezes se podem atender de modo eficiente as famílias mais pobres.

Uma posição muito bem solidificada é a do digníssimo Arcebispo Dom Marcel Lefevbre (2013, p.88) que diz:
"Que lugar deixa a doutrina da Igreja ao Estado, no ensino e na educação? A resposta é simples: à exceção de certas escolas preparatórias aos serviços públicos, como por exemplo, as escolas militares, o Estado não é educador nem docente. Sua função segundo o princípio de subsidiariedade aplicado por Pio XI na citação acima, é promover a fundação de escolas particulares pelos pais e pela Igreja, e não substituí-los. A escola pública [...] mesmo senão for laica e que o Estado não reivindica o monopólio da educação, é um princípio contrário a doutrina da Igreja".
Veja-se então, que para Dom Marcel o Estado não poderia sequer ter uma única escola, mesmo que confessional, para educar uma única criança. A solução claramente privatista, entretanto, parece demasiado exagerada. Vejamos que Dom Estevão Bettencourt é um pouco mais flexível, e mais adiante, entenderemos o por que.
"são dignas de todo encômio as iniciativas do Estado moderno que têm em mira garantir a cada cidadão os meios de vida necessários em casos de doença, acidente, desemprego ou velhice. Contudo daí não se segue, possa ou deva ser extinto o direito ao pecúlio, pois, sem este, o homem fica sendo em tudo dependente da sociedade e do Estado; verá limitadas ou mesmo tolhidas as suas livres iniciativas."
Em que pese Dom Estevão estar falando de ouro campo do estado de bem-estar social, o mesmo princípio pode ser aplicado no caso da educação. As iniciativas de educar as crianças do Estado não são em si mesmas ruins, contudo ele não pode monopolizá-las, e deveriam primariamente se voltar a favorecer condições para que a sociedade mesma se organize em fornecer educação do que ele mesmo oferecê-la, mas que em situações ou locais onde carência de bens materiais impossibilite ou que outra circunstância material qualquer dificulte que um meio não estatal faça esse tipo de ação, que o Estado o faça.

Isto fica precisamente evidente quando lemos a encíclica Mater et magistra do Papa João XXIII, quando ele fala da socialização de serviços (quando estes são oferecidos pelo Estado).

"Sendo assim, deverá concluir-se que a socialização, crescendo em amplitude e profundidade, chegará a reduzir necessariamente os homens a autômatos? A esta pergunta temos de responder negativamente. Não se deve considerar a socialização como resultado de forças naturais impelidas pelo determinismo; ao contrário, como já observamos, é obra dos homens, seres conscientes e livres, levados por natureza a agir como responsáveis, ainda que em suas ações sejam obrigados a reconhecer e respeitar as leis do progresso econômico e social, e não possam subtrair-se de todo à pressão do ambiente. Por isso, concluímos que a socialização pode e deve realizar-se de maneira que se obtenham as vantagens que ela traz consigo e se evitem ou reprimam as conseqüências negativas."

Desta forma percebe-se que o Estado pode e deve atuar na educação (bem como em outros setores do assim chamado estado de bem-estar social) de modo em que se preencham os seguintes requisitos.

  1. Ele não pode nem monopolizar e nem ser demograficamente mais representativo do que as escolas comunitárias e/ou particulares. Sua função é atender àqueles grupos sociais que, de outra forma, não seriam atendidas.
  2. Ela não pode ser uma educação secularizada, laica, ela deve ser confessional em posse da verdadeira religião.
Uma proposta justa para o nosso país, dada as dificuldades que temos, seria que as escolas públicas além de confessionais, tivessem sua gestão privatizada. Isto é, embora permaneçam sendo custeadas e financiadas mormente pelo Estado, sua administração passaria a mão de particulares, tendo além do financiamento público, liberdade para conseguir outros meios de se autofinanciar. 

E claro, mais que simplesmente serem particularmente administradas (por empresas, famílias e até a própria Igreja) ao lado das que já existem privadas, o currículo nacional deveria ser confessional e ser elaborado conforme a doutrina da Igreja. 

É óbvio que se essa formulação não seja talvez a mais fiel de todas, certamente ainda é o bem possível de se obter. A participação estatal na POSSE das mesmas poderia ser subtraída gradativamente na medida em que elas mostrassem capacidade de continuar atendendo eficientemente a sua população local de modo sustentável com mais recursos próprios e cada vez menos recursos públicos. Assim, caberia ao Estado apenas participar - já num estágio mais avançado - naquelas que não conseguissem se autofinanciar ou que mesmo que se financiem, não consigam atender eficientemente a sua demanda local. Mas esta etapa já seria mais de longo prazo.

O processo de municipalização da educação é benéfico e um aspecto muito positivo seria que as escolas públicas cuja administração do Estado fosse direta, também fosse feita pelo ente federado mais próximo do cidadão que é o município. Assim, só aqueles órgãos educacionais cuja importância seja geopolítica ou de Estado (como escolas militares ou mesmo universidades que têm um papel tecnológico e científico vital para o Estado na geopolítica e na economia global) continuariam privativos do Estado.

O fato é que o desempenho direto do Estado de alguns serviços, mesmo que modo desnecessário ás vezes, não constitui em si mesmo socialismo e mesmo o tão criticado aqui Ludwig von Mises reconhece isso, entretanto o ideal é que o Estado execute somente ações que sejam muito necessárias e que de outra forma não seriam executadas pela própria sociedade.

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LEFEVBRE, Dom Marcel. Do liberalismo à apostasia - A tragédia conciliar. Niterói: Editora Permanência, 2013.

Dom Estevão: http://www.pr.gonet.biz/kb_read.php?num=2966

Encíclica: http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater.html