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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Carta Brasileira da Propriedade e do Trabalho


Por Deus, pela Pátria, pela Família, pela Tradição, pela Justiça Social e pela justa Propriedade, inspirados nos ensinamentos do Evangelho, do Tomismo, da Doutrina Social da Igreja, do Distributismo, do Cooperativismo e do verdadeiro Corporativismo, proclamamos os seguintes princípios:

I – Os bens econômicos, tanto naturais quanto artificiais, derivam de Deus, o Sumo Bem, que os colocou a serviço da Pessoa Humana, de modo que os bens existem para o Homem e não o Homem para os bens.

II – Prevista no Decálogo e de acordo com a natureza humana, a propriedade, aceita como um bem necessário pelo consenso universal ao longo dos séculos, é um direito natural, cujo uso deve estar subordinado aos ditames do Bem Comum. Fruto do trabalho, a propriedade é a projeção do Homem no espaço, sobre os bens e sobre a terra, e também a projeção do Homem no tempo, pela transmissão das heranças, e possui um caráter a um só tempo individual e social. Este caráter simultaneamente individual e social da propriedade, sublinhado, dentre outros por Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum, e por Pio XI, na Encíclica Quadragesimo Anno, não enfraquece, mas, ao contrário, fortalece, robustece o direito de propriedade.

III – A apropriação da terra e dos chamados bens de produção é plenamente legítima, uma vez que é conforme à natureza humana e posto que, em regra, tal regime assegura, de maneira mais eficaz do que qualquer outro, a utilização das riquezas. Deve o detentor da riqueza, porém, ter sempre em consideração o fato de que os bens materiais estão destinados por Deus, em primeiro lugar, para a satisfação das necessidades de todos. Assim, o direito de propriedade não pode e não deve ser exercido de modo injusto, em detrimento de outros ou da comunidade, ou, em outras palavras, o uso da propriedade se subordina ao exercício de sua função social, e, em razão disto, ao direito de propriedade corresponderão deveres, que o Estado, como guardião do Bem Comum, regulará e determinará, visando sempre a Justiça Social.

IV – Destarte, de acordo com a tradicional concepção tomista e cristã da propriedade, concebemos a propriedade particular como uma propriedade individual em proveito de todos, nos opondo a um mesmo tempo à inexistência de tal direito e à concepção absoluta deste, e, conscientes de que os problemas da propriedade com mais propriedade se resolvem, defendemos a máxima difusão de tal direito.

V – A propriedade, usada retamente, cumprindo a sua função social, é a sólida base da dignidade, da independência e das liberdades concretas das Pessoas e das Famílias, devendo ser sempre protegida pelo Estado, que, ao mesmo tempo, detém o direito de desapropriar, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, a propriedade cujo detentor não cumprir os seus deveres em face da comunhão social.

VI – A pequena e a média propriedade agrícola, profissional, artesanal, comercial ou industrial devem ser garantidas e favorecidas pelo Estado, que deve, ademais, fomentar a formação de cooperativas que lhes assegurarão todas as vantagens das grandes empresas.

VII – Considerando que o capitalismo não é o regime da propriedade e da livre iniciativa, mas sim o sistema em que o sujeito da Economia é o Capital e em que o acréscimo ilimitado deste é considerado o objetivo final e único de toda a produção, bem como o sistema em que indivíduos e grupos de indivíduos podem usurpar as propriedades alheias por meio de trustes, cartéis, monopólios e oligopólios, nos proclamamos defensores da propriedade e, portanto, anticapitalistas, e, pugnando pela generalização da propriedade, fazemos nossas as seguintes máximas: “Menos capitalismo, mais propriedade!”; “menos capitalismo, mais capitalistas!” 

VIII – O direito de herança, que está estreitamente ligado ao direito de propriedade, é, assim como este, de essencial interesse social. O Estado não pode suprimir, direta ou indiretamente, a herança. Caso o faça, estará ele atentando gravemente contra o Bem Comum e ofendendo invioláveis direitos da Pessoa Humana e da Família. Entendemos que os atuais impostos sobre as heranças têm clara natureza confiscatória, atentando contra o princípio da propriedade, e julgamos que o Estado deva suprimir toda e qualquer tributação sobre a transmissão de heranças, preservando, assim, o patrimônio familiar na sua integralidade. Existem tributos justos, necessários ao Bem Comum e mesmo recomendáveis, como também existem tributos injustos, muitas vezes extorsivos e asfixiantes das riquezas nacionais. Estes últimos, evidentemente, devem ser extintos. 

IX – Não somos estatistas nem liberais. Não defendemos o Estado Máximo nem o Estado Mínimo. Sustentamos, sim, o Estado Necessário, indutor do desenvolvimento econômico e social, promotor do Bem Geral da Nação. Em outros termos, entre os dois extremos, a saber, o Estado-Providência, ou Estado-fetiche, do socialismo e o Estado-polícia do liberalismo, colocamo-nos numa justa linha intermédia, segundo a qual o Estado, de acordo com o princípio de subsidiariedade, deve interferir nas relações econômicas e sociais apenas quando isto for necessário, atuando onde os particulares não puderem fazê-lo, seja por insuficiência, por deficiência ou inconveniência. Nesta última hipótese se enquadra a exploração de bens vitais à segurança nacional, como é o caso dos minérios atômicos, ou à independência econômica do País, como é, atualmente, no Brasil, o caso do petróleo. 

X – Ente essencialmente social e político, o Homem não vive em Sociedade como um indivíduo isolado, sendo parte de diversos Grupos, Organismos ou Corpos Sociais Naturais. Assim, não é a Sociedade uma multidão amorfa de indivíduos, mas um conjunto orgânico e uma hierarquia de Grupos Naturais, cujas aspirações devem sempre chegar ao Estado, Estado que é, por seu turno, a síntese e o coroamento dos Grupos Naturais.

XI – A Família, primeiro Grupo Social Natural e cellula mater da Sociedade, tem como alicerce a natureza humana, sendo anterior ao Estado, que deve preservá-la e jamais violentá-la. O Estado, que nasce da Família e dos demais Grupos Naturais integrantes da Sociedade, deve ser forte, sobretudo moralmente forte, para proteger a Família e os demais Corpos Intermediários.

XII – Projeção do Homem no tempo, ligando-o ao Pretérito e ao Porvir, e também no espaço, sobre as demais pessoas, a Família, pequena grande associação em que recebemos a vida e grande parte da educação e de cuja vida depende a vida da Sociedade como um todo, deve ser provida de meios que lhe assegurem as suas justas liberdades e a sua independência econômica.

XIII – Para a maior proteção da Família, célula básica e fundamental da Sociedade, pleiteamos a instituição do Bem de Família, totalmente isento de quaisquer impostos, assim como a instituição do Salário-Família e do Voto Familiar.

XIV – A ordem social e econômica tem por fim promover o Bem Comum e realizar o Desenvolvimento Nacional e a Justiça Social, com base na liberdade de iniciativa, na função social da propriedade, na valorização do Trabalho, na harmonia, solidariedade e colaboração entre os diferentes segmentos da Sociedade e entre o Trabalho e o Capital, na difusão da propriedade, na expansão dos empregos e na repressão aos abusos de poder praticados pelos grandes grupos econômicos e financeiros nacionais e internacionais.

XV – A harmonia, a solidariedade e a colaboração entre o Trabalho e o Capital decorrem do fato de ser este o produto da acumulação daquele, não podendo, evidentemente, um existir sem o outro. Não pode o Capital concentrar e absorver a totalidade dos frutos do Trabalho, como não pode o Trabalho dominar o Capital. Cumpre ao Estado impor a necessária disciplina a ambos, dentro de rigorosas e vigorosas normas de Justiça Social, de modo que tanto os detentores do Capital quanto os trabalhadores participem dos resultados e benefícios da produção de riqueza.

XVI – O Trabalho é, a um só tempo, um direito pessoal e um dever social. Se o Capital participa dos resultados do Trabalho, é justo que o Trabalho participe, em justa medida, dos resultados do Capital. A dignidade da Pessoa Humana, criada por Deus à Sua imagem e semelhança, exige uma organização social em que o Trabalho não seja envilecido como uma mercadoria, como o tem sido no regime liberal-capitalista, dando-se a todos os Homens direito ao Trabalho, direito de cumprir um dever social e humano, em condições tais que o ponham integralmente a salvo da miséria e de toda a sorte de humilhações, permitindo que progridam e se desenvolvam moral, mental, social, política e economicamente, de acordo com as suas possibilidades e as suas capacidades. Em outras palavras, não se pode atribuir apenas ao Trabalho ou apenas ao Capital aquilo que é produto do concurso de ambos, sendo uma grande injustiça que um deles arrogue a si todos os frutos de tal concurso, como o fez o Capital, durante a nefasta era individualista-liberal que viu seu ocaso ao término da Grande Guerra de 1914-1918.

XVII – O autêntico regime corporativo é o modo de organização baseado no agrupamento dos Homens de acordo com a comunhão de seus legítimos interesses e de suas funções sociais, tendo por necessário coroamento a representação pública e distinta de tais agrupamentos, representação esta que é absolutamente fundamental para que exista a autêntica representação política.

XVIII – No autêntico regime corporativo, em que cada atividade profissional será representada e regulada por aqueles que a exercem, todos tornar-se-ão aliados e associados na grande obra do Bem Comum e da Grandeza Nacional, não havendo nele qualquer espaço para o ódio e a luta de classes.

XIX – Base da autêntica organização corporativa, o direito de associação é um direito natural e, portanto, anterior ao Estado, que deve mantê-lo e protege-lo.

XX – Como restou dito, o Trabalho, que, é ao mesmo tempo um direito pessoal e um dever social, não é e não pode ser tratado como um artigo de comércio, uma mercadoria que se compra e se vende. Deve ser ele tratado como coisa humana, necessária ao Homem para a sua subsistência e o seu desenvolvimento integral. Fruto do poder criador do Ente Humano, de seu sacrifício no cumprimento do dever, o Trabalho, que é um meio do Homem e não um fim em si mesmo, beneficia a todos e a cada um dos membros da Sociedade e contribui para o engrandecimento do Bem Comum. Parte do Homem na obra da produção, o Trabalho pode ser intelectual, técnico ou manual. Tais diferenciações, contudo, são de modos de ser e não de essência, sendo o Trabalho, com efeito, unitário do ponto de vista ético e em face do bem e das finalidades superiores da Sociedade e da Nação, devendo ser sempre protegido pelo Estado e por este coordenado no superior sentido da grandeza moral e material da Nação. 

XXI – Deve o salário corresponder às normais exigências da vida, de acordo com as condições do momento e do local. O Estado deve garantir a todos os trabalhadores um salário justo e digno, instituindo, juntamente com o Voto Familiar, o Salário Familiar.

XXII – A Economia e as riquezas existem para o Homem e não o contrário. Tendo em vista este fato e o primado do Bem Comum sobre o bem particular, deve o Estado, como guardião e gerente do Bem Comum, exercer uma ação positiva sobre a vida econômica nacional, imprimindo uma direção à Economia e orientando-a no sentido de predomínio dos interesses sociais e nacionais sobre aqueles particulares.

XXIII – Assim, a Nação Profunda e Tradicional, a Nação Autêntica e Verdadeira, ou, em uma palavra, a Nação Integral, poderá realizar a grandeza da Pátria, organizando-a numa Sociedade efetivamente orgânica e harmônica, moralizando-a e dando-lhe a verdadeira Justiça Social e o verdadeiro Progresso.


Victor Emanuel Vilela Barbuy,
São Paulo, 15 de junho de 2018.

OBS: Além do Grupo de Estudos Perillo Gomes, subscreveram este documento as seguintes associações: Liga Distributista do Brasil, Frente Integralista Brasileira, Legião da Santa Cruz, Casa de Plínio Salgado e Centro de Estudos Professor Arlindo Veiga dos Santos.

sábado, 9 de junho de 2018

Notas sobre a Tradição


O homem, embora não seja um mero produto do meio em que se encontra inserido, muito deve, em sua maneira de ser individual e concreta, ao momento histórico no qual vive, ao ambiente em que nasce, cresce e é educado e também ao atavismo, elo que o liga até aos mais remotos ancestrais.[1] Assim, podemos dizer que o homem é um ser não apenas político e social, mas também histórico e tradicional, sendo cada ente humano, com efeito, uma “tradição acumulada”, conforme bem salientou Vázquez de Mella.[2]

Pilar e seiva da Pátria e da Nação, a Tradição é a transmissão, a entrega constante de um patrimônio de valores espirituais, culturais e religiosos essenciais a uma comunidade de uma geração a outra, ou, no dizer de Marcello Veneziani, “de pai para filho”.[3]

A palavra Tradição deriva do vocábulo latino traditio, que, por seu turno, deriva de tradere, termo que possui o significado de entregar ou de dar e, por sua vez, procede da raiz indo-europeia do, que podemos traduzir como dar. Como escreveu Ricardo Dip, ao primitivo do indo-europeu se antepôs a preposição latina trans, que significa além, ir além ou de um lado a outro e que, a um tempo, se pronunciava tras, o que permitiu a redução para tra, como aparece em palavras como tradere e traditio.[4] A este último termo latino corresponde o vocábulo grego παράδοσις (parádosis), que igualmente possui o significado de “transmissão”.[5]

Tanto pela preposição latina trans quanto pelo termo indo europeu do, significa o termo traditio “algo que transita de alguém, ou de algo, para além; alguma coisa que se dá ou se entrega de um lado a outro”. Este essencial dinamismo do significado da palavra traditio é, em verdade, muitíssimo relevante, consoante ponderou Dip, para acentuar o absurdo erro no entendimento que reserva ao vocábulo “tradição” a nota, incondicional, de estaticidade, de oposição ao progresso ou de conservação total.

Assim, a Tradição, que se elabora incessantemente, vem a ser, como há pouco assinalamos, a entrega constante, ao longo das gerações, de um patrimônio de cultura e de valores substanciais de uma Sociedade, mantidos na sua essência, corrigidos sempre que necessário e incessantemente aprimorados,[6] representando, nas palavras de António Sardinha, a “continuidade no desenvolvimento” e a “permanência na renovação”.[7] Alhures definida por nós, em paráfrase a José de Alencar, como a “arca veneranda da sabedoria de nossos maiores, consolidada pelos séculos e apurada pelas gerações”,[8] a Tradição não é todo o Passado, mas tão somente aquela porção do Passado que, na expressão de Víctor Pradera, “qualifica suficientemente os fundamentos doutrinais da vida humana de relação”, isto é, “o passado que sobrevive e tem virtude para fazer-se futuro”,[9] ou, no dizer de Plínio Salgado, o “Passado Vivo”,[10] ou, ainda, nas palavras de Ribeiro Couto, num de seus mais belos sonetos, o “Passado que é presente e que é futuro”.[11] Neste sentido, assim distinguiu Hélio Rocha a Tradição do Passado:
Tradição não é simplesmente o passado.
O passado é o marco. A Tradição é a continuidade.
O passado é o acontecimento que fica. A Tradição é o fermento que prossegue.
O passado é a paisagem que passa. A Tradição é a corrente que continua.
O passado é a mera estratificação dos fatos históricos já realizados.
A Tradição é a dinamização das condições propulsoras de novos fatos.
O passado é estéril, intransmissível. A Tradição é essencialmente fecundadora e energética.
O passado é a flor e o fruto que findaram. A tradição é a semente que perpetua.
O passado é o começo, as raízes. A Tradição é a seiva circulante, o prosseguimento.
O passado explica o ponto de partida de uma comunidade histórica.
A tradição condiciona o seu ponto de chegada.[12]
O passado é a fotografia dos acontecimentos. A tradição é a sua cinematografia.
Enfim: Tradição é tudo aquilo que do passado não morreu.[13]
Destarte, a Tradição é, como prelecionou Francisco Elías de Tejada y Spínola, “a entrega daquilo que possui forças vitais suficientes para influir em nossos atual acontecer”,[14] ou, no dizer de José Pedro Galvão de Sousa, “o passado que não passa, por encerrar uma força vivificadora que se projeta para o futuro”,[15] não se confundindo, pois, com o passadismo, o imobilismo e o conservantismo estático. Compreendendo o termo “saudosismo” como sinônimo de passadismo, assim o distinguiu Gustavo Barroso da Tradição:
Tradição é uma coisa; saudosismo, outra. A tradição vivifica; o saudosismo mata. A tradição é um olhar que se deita para trás, a fim de buscar inspiração no que os nossos maiores fizeram de grande e imitá-los ou superá-los. O saudosismo é o olhar condenado da mulher de Lot, que transforma em estátua de sal. A tradição é um impulso que vem do fundo das idades mortas dado pelas grandes ações dos que permanecem vivos no nosso culto patriótico. O saudosismo é um perfume de flores fanadas que envenena e enerva. A tradição educa. O saudosismo esteriliza.
Amar as tradições da terra, da raça, dos heróis é buscar nos exemplos do passado a fé construtiva do futuro. Mergulhar dentro delas para carpir a pequenez do presente diante de sua grandeza é confessar a própria impotência e a própria incapacidade.

Da tradição nos vêm gritos de incitamento. Do saudosismo nos vêm lamentos e jeremiadas. Uma nação se constrói com aqueles gritos e se perde com essas lamentações.[16]

Deste modo, como salientamos algures,[17] o verdadeiro tradicionalista, ao contrário do passadista, aceita do Ontem apenas as forças capazes de influir sobre o Hoje e, em larga medida, sobre o Amanhã, defendendo, pois, a necessidade de um retorno não ao Passado enquanto tal, mas aos valores eternos que floresceram nos melhores tempos do Passado, que nos deve interessar como “base e matriz do Porvir”, como escreveu Gustave Thibon,[18] assim como aos valores do Pretérito que, embora não eternos, são duradouros e permanecem vivos no Presente. Do mesmo modo, o tradicionalista autêntico, ao contrário do conservantista estático, rejeita os elementos contrários à Tradição e as tradições espúrias presentes nos tempos que correm, não se agarrando, pois, nem ao Passado nem ao Presente como a uma tábua de salvação, e sendo, em verdade, o único verdadeiro senhor do Porvir. E se o homem moderno é, segundo Chesterton, "um viandante que se perdeu na estrada" e que "tem de regressar ao ponto de partida, se quiser se lembrar de onde veio e para onde vai",[19] o tradicionalista, consciente de onde veio e para onde vai, tem a honra de ser, nos tenebrosos tempos presentes, um homem contra a corrente, ou, por outras palavras, um extemporâneo, um inatual no sentido de não se enquadrar na mentalidade ora vigente, sendo, no entanto, atual no sentido de portar ideias sempre novas em razão de sua perenidade. Isto porque a Tradição, por mais antiga que seja, é sempre nova, ou, na expressão de Chesterton, “sempre moderna”, sendo uma tradição, conforme ressaltou o autor de Ortodoxia, uma coisa viva e não morta e que é mantida porque é boa e não porque é antiga, sendo, ademais, sempre sentida como algo recente e não remoto.[20]

Tratando do pensamento de Charles Péguy, Daniel Rops escreveu que havia no patriotismo do escritor, poeta e ensaísta a noção da continuidade histórica, que o tornou infinitamente mais tradicionalista do que a maioria daqueles que se vangloriam de tal título, salientando que “o tradicionalismo de Péguy não contempla com desespero um passado morto; propõe ao homem razões de caminhar para a frente”.[21] Em nosso sentir, todo tradicionalismo verdadeiramente digno de tal nome possui a noção da continuidade histórica e não é um pranto nostálgico ou de desespero sobre as ruínas, os escombros de um Passado perdido para sempre, mas uma doutrina sólida e viva, capaz de dar ao homem razões para seguir em frente em sua caminhada histórica.

Isto posto, faz-se mister salientar que julgamos que todo legítimo tradicionalista possa afirmar, como Gustave Thibon, que quando lamenta o rompimento de uma tradição é sobretudo no Futuro que pensa, assim como quando vê secar a raiz de uma planta sente pena das flores que, por falta de seiva, não desabrocharão amanhã.[22] 

Vista por alguns como figadal inimiga do progresso, é a Tradição, ao contrário, a base, o alicerce de todo progresso autêntico e estável, havendo sido denominada, com efeito, “progresso hereditário” por Vázquez de Mella.[23] Nesta mesma linha de raciocínio, escreveu Michele Federico Sciacca que “não há progresso verdadeiro ou construtivo sem tradição”, do mesmo modo que “não há tradição viva e operante sem progresso”,[24] e Plínio Salgado, em estudo sobre a obra de Francisco Elías de Tejada, sublinhou que “Tradição e Progresso estão de tal sorte unidos, que este não pode existir sem aquela nem aquela sem este”.[25] No mesmo diapasão, em ensaio sobre o Quarto Centenário da cidade de São Paulo, o mesmo Plínio Salgado, pouco depois de haver ressaltado que “a tradição do povo bandeirante vai buscar raízes na capacidade de expansão lusíada e no caráter cristão dos nossos primeiros aglomerados humanos”, escreveu que se pode dizer que a palavra “tradição” é sinônimo de “progresso”. Isto porque, como observou o escritor e pensador patrício, “se, etimologicamente, ‘tradição’ significa transmitir do passado para o futuro, também ‘progresso’, sendo, ao contrário de ‘regresso’, a propulsão para a frente”, pressupõe, logicamente, “uma posição anterior determinando uma posição posterior, o que, em última análise, é movimento do passado para o futuro”.[26] 

Assim, a Tradição é o alicerce de todo Progresso digno deste nome, da mesma forma que o respeito ao Passado é a base sobre a qual se assenta todo Futuro grande e sólido, ou, nas palavras de Arlindo Veiga dos Santos, “o pretenso progresso que renega a tradição é eterno recomeço, perpétua imperfeição”,[27] do mesmo modo que “o Presente que nega o Passado não terá Futuro”.[28]

Fio ou cadeia que nos liga aos nossos antepassados e aos nossos descendentes e patrimônio que herdamos de nossos pais e devemos transmitir, aprimorado e engradecido, a nossos filhos nascidos ou por nascer,[29] deve ser a Tradição, pois, compreendida não como uma relíquia de museu ou um ser fossilizado, mas sim como uma força viva, dinâmica e atuante, em permanente e contínuo movimento, que não se constitui na antítese do Progresso, mas em seu pressuposto. “Fonte de permanente renovação”, na frase de Alfredo Buzaid, a Tradição nos subministra, conforme enfatizou este, “o passado vivo, com os seus exemplos, as suas aspirações, o seu legado de saber e de experiências”.[30]

Realidade viva e dinâmica, a Tradição tem importância central na estruturação das instituições políticas de uma nação, e define a identidade, o caráter desta, assim como a sua missão histórica, conforme assinalou Heraldo Barbuy.[31] Neste sentido, no estudo há pouco citado sobre Francisco Elías de Tejada, ponderou Plínio Salgado que “a Tradição é o caráter da Nação” e, assim como para o homem isolado o caráter vem a ser, em última análise,
a memória de cada ato individual e do conjunto dos atos individuais na sua vida de relação com outros homens e com o conjunto social, informando permanentemente o “fazer” e o 'que fazer' no presente e no futuro, também o caráter de uma Nação consiste nessa faculdade de lembrar, de trazer em dia as atitudes pretéritas, para harmonizar o que foi, o que é e o que virá, num sentido de afirmação de personalidade.[32]
Pouco adiante, havendo ressaltado que não se utilizava, num caso como no outro, do termo “memória” somente no sentido naturalista ou experimentalista da psicologia, mas também com um “sentido espiritual de permanência” e mesmo de “consciência de vocação”, o autor de Reconstrução do Homem, de O ritmo da História e de Como nasceram as cidades do Brasil asseverou que “perder a Tradição, para os indivíduos, como para os povos, é perder a memória e, com esta, a noção do seu próprio ser e do seu definido que-fazer”. É, em uma palavra, “o embrutecimento, que prepara o homem, como as coletividades humanas, para a abdicação de toda liberdade e a extrema degradação dos cativeiros políticos, econômicos e morais."[33]

Afastada da Tradição, a política acabou dominada pelo “idealismo utópico” de que nos falou Oliveira Vianna[34] e que corresponde à “política silogística” denunciada por Joaquim Nabuco[35] e à “política abstrata” de que nos falou José Pedro Galvão de Sousa.[36] Este idealismo, de ruinosas consequências para todo o chamado tecido social, também pode ser denominado idealismo inorgânico e vem a ser o idealismo que não toma em consideração os dados da experiência,[37] ou, noutros termos, da Tradição e da História, podendo ser definido como sendo “todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir”.[38]

Ao idealismo utópico, os verdadeiros tradicionalistas e realistas devem opor o “idealismo orgânico”, de que igualmente nos falou Oliveira Vianna e que corresponde, por sua vez, ao “idealismo fundado na experiência” de que nos falou José Ingenieros[39] e ao “idealismo construtor” sustentado por Gustavo Barroso[40] e Plínio Salgado.[41] É este, consoante escrevemos alhures,[42] o idealismo consciente de que as instituições devem brotar da Tradição e da História dos povos e não da cabeça de ideólogos forjadores de quimeras e utopias, isto é, o idealismo que extrai da História uma Tradição sólida e viva, um coeficiente espiritual de edificação moral, social e cívica, um desenvolvimento estável e verdadeiro, transmissor e enriquecedor do patrimônio de pensamento e de costumes herdado de nossos maiores. 

Como bem lecionou Francisco Elías de Tejada, é a Tradição a “causa diferenciadora das comunidades políticas”[43] e a “medula dos povos”, assim como uma excelente “filosofia política”, a “filosofia do homem concreto” e das liberdades concretas e limitadas,[44] em oposição à ideologia liberal do homem abstrato e da liberdade abstrata. Inserida, na expressão de Alberto Buela, “como coisa valiosa no sangue vivo dos povos”,[45] a Tradição, cujos protagonistas, como enfatizou Álvaro D’Ors, são os atualmente vivos e não os mortos,[46] vem a ser o baluarte da identidade e da independência das comunidades nacionais.

Assim, consideramos válida a observação de Alfredo Pimenta segundo a qual “Nação que rejeita a Tradição é Nação que se suicida, que se nega a si própria”,[47] fazendo nossas, ainda, as seguintes palavras de Jacinto Ferreira: “Se é certo que não há ciência sem experiência, também não há Pátria sem Tradição”.[48] No mesmo sentido, em maio de 1967, no discurso de saudação ao então Príncipe Herdeiro e atual Imperador do Japão, Akihito, e à sua esposa Michiko, Plínio Salgado assim disse:
Cumpre preservar o que há de próprio na personalidade nacional, pois um povo que faz tábula rasa de suas características, de suas peculiaridades, de sua tradição, destrói as energias defensivas do seu organismo e prepara-se – através de um mal-entendido internacionalismo e cosmopolitismo dissolvente – para se tornar escravo daqueles que souberam conservar sua tradicionalidade.[49]
Perdendo sua autonomia e vitalidade, bem como a consciência de sua missão histórica, a Nação que renega a Tradição é, pois, como uma planta sem raiz atirada a um rodamoinho ou uma folha amarelada, morta e desprendida de seu galho que o vento leva para lá e traz para cá, ao seu bel prazer.

Havendo falado em Pátria e Tradição, reputamos ser oportuno sublinhar que, como fez ver Marcello Veneziani, nenhum outro lema sintetiza melhor a Tradição do que “Deus, Pátria e Família”, tríade que o pensador italiano denominou a “trindade tradicional”[50] e que é, na expressão de Afonso de Escragnolle Taunay, uma tríade “grandiosa como nenhuma outra”.[51]

Partindo do pressuposto de que o chamado Poder Moderador seria, como aduziu Braz Florentino Henriques de Souza, “o princípio conservador por excelência das sociedades”,[52] observou Ítalo Dal’Mas, no pórtico da obra Nossas Raízes, que “a Raiz simboliza a Tradição, aquele elo que ligo o passado ao presente, aquela força espiritual transmitida de uma geração a outra”, constituindo-se numa “espécie de poder moderador ou fonte de inesgotável diálogo entre o ontem, o hoje e o amanhã”.[53]

A Tradição conserva a Sociedade, além de fecundá-la e robustecê-la, mantendo-a dentro do curso da Ordem Natural,[54] o que representa algo de suma importância, uma vez que, consoante sentenciou Heraldo Barbuy, a violação da Ordem Natural é sempre “punida pela desgraça geral, pela desordem, pela instabilidade, pela revolta e pelo caos”.[55]

Antes de encerrar as presentes páginas a propósito da Tradição, julgamos ser mister salientar que, à luz do tradicionalismo político, doutrina que inspirou este ensaio, é a Tradição algo essencialmente histórico e, como tal, indissociável da História. Esta, por sua vez, quando apartada da Tradição, “é um túmulo”, no dizer de Plínio Salgado. No entender deste, é a História corpo, enquanto a Tradição é espírito, espírito que se renova, se atualiza, se dirige para o Porvir,[56] e, evidentemente, deve reger o corpo.

Por fim, cumpre sublinhar que a fidelidade às raízes, raízes do Homem enquanto ser essencialmente histórico e tradicional, exprime o mais profundo sentido de Tradição, que não exclui, de forma alguma, a razão criadora.[57] Com efeito, podemos dizer que não há doutrina política mais racional do que o tradicionalismo, do mesmo modo que podemos dizer que inexiste doutrina política mais renovadora do que essa. Assim, conhecedores da Tradição, da História e de suas lições e conscientes de que, como asseverou Martin Heidegger, “tudo o que é essencial e grande surgiu do fato de que o homem tinha uma pátria e estava radicado em uma tradição”,[58] bem como do fato de que fora da Tradição não há autêntico Progresso nem efetiva renovação, mas apenas decadência e anarquia, os defensores da Tradição, “homens do eterno”, na expressão de Thibon,[59] e, destarte, os únicos verdadeiros senhores do Futuro, devem lutar, com todas as suas forças e sem nada esperar em troca, para manter viva a chama da Tradição.

Notas:
[1] Cf. SOUSA, José Pedro Galvão de, A historicidade do Direito e a elaboração legislativa, São Paulo, Edição do autor, 1970, p. 25.
[2] El concepto dinámico de la tradición (Discurso del Parque de la Salud de Barcelona, de 17 de maio de 1903). Disponível em:http://hispanismo.org/politica-y-sociedad/976-discursos-de-vazquez-de-mella.html. Acesso em 29 de junho de 2016. Tradução nossa.
[3]De pai para filho: elogio da Tradição, Tradução de Orlando Soares Moreira, São Paulo, Edições Loyola, 2005. Obra originalmente escrita em italiano.
[4] Segurança jurídica e crise pós-moderna, São Paulo, Quartier Latin, 2012, p. 35.
[5] Cf. LAMAS, Félix Adolfo, Tradición, tradiciones y tradicionalismos, in DIP, Ricardo (Organizador), Tradição, revolução e pós-modernidade, Campinas, Millennium, 2001, p. 26
[6] Cf. BARBUY, Victor Emanuel Vilela, Idealismo utópico e idealismo orgânico (Comunicação apresentada em 29 de novembro de 2011, durante o III Simpósio de Filologia e Cultura Latino-Americana, realizado na Universidade de São Paulo). Disponível em:http://tradicaoehistoria.blogspot.com.br/2016/06/idealismo-utopico-e-idealismo-organico_26.html. Acesso em 30 de junho de 2016; SOUSA, José Pedro Galvão de; GARCIA, Clovis Lema e CARVALHO, José Fraga Teixeira de, Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 533.
[7] Ao princípio era o Verbo, 2ª edição, Lisboa, Editorial Restauração, 1959, p. 10.
[8] Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit. O trecho de José de Alencar por nós parafraseado se encontra em A propriedade, Prefação do Conselheiro Dr. Antônio Joaquim Ribas, Rio de Janeiro, B. L. Garnier – Livreiro-Editor, 1883, p. 2.
[9] O Novo Estado, Tradução portuguesa, Lisboa, Edições Gama, 1947, p. 15.
[10] O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 205.
[11] Entre mar e rio, 3ª edição, in Poesias reunidas, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1960, p. 446.
[12] Cumpre ressaltar que, diversamente de Hélio Rocha, consideramos que a Tradição, embora sendo a “seiva circulante” e o “prosseguimento”, representando a “continuidade” e condicionando o “ponto de chegada” de uma comunidade, não deixa também de ser, como o Passado, um “marco”, e de representar também o “começo”, as “raízes” de uma comunidade.
[13] Apud GRAMACHO, Derval Cardoso, Toré: uma tradição inventada na etnogênese dos Kiriri, Dissertação apresentada ao Colegiado do Curso de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, do Campus V da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como requisito para obtenção do grau de Mestre, Santo Antônio de Jesus, Bahia, 2010, p. 7.
[14] La causa diferenciadora de las comunidades políticas – Tradición, Nación e Imperio, Madrid, Instituto Editorial Reus, 1943, p. 16. Tradução nossa.
[15] Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 535
[16] Espírito do século XX, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S/A, 1936, pp. 263-264.
[17] A Tradição (Comunicação apresentada em 5 de maio de 2015, durante a X Semana de Filologia na USP). Disponível em:http://tradicaoehistoria.blogspot.com.br/2015/05/a-tradicaoi.html. Acesso em 30 de junho de 2016.
[18] Les hommes de l’éternel, Paris, Editions Mame, 2012, p. 115. Tradução nossa.
[19] The New Jerusalem, London, Hodder & Stoughton, 1920, p. I. Tradução nossa.
[20] A tradition is a live thing, not a dead one (citação retirada de artigo de Chesterton publicado no jornal Daily News, em 24 de dezembro de 1910). Disponível em: http://platitudesundone.blogspot.com.br/2016/04/a-tradition-is-live-thing-not-dead-one_8.html. Acesso em 30 de junho de 2016.
[21] Péguy, Tradução de Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro, Livraria AGIR Editora, 1947, pp. 104-105. Obra originalmente escrita em francês.
[22] L’uomo maschera di Dio, Tradução italiana de Giovanni Visentin, Torino, SEI, 1971, p. 258. Obra originalmente escrita em francês.
[23] Vázquez de Mella (antologia), Seleção, estudo preliminar e notas de Rafael Gambra, s/d, p. 22. Disponível em:http://www.scribd.com/doc/29642956/Vzquez-de-Mella-Antologia. Acesso em 30 de junho de 2015.Tradução nossa.
[24] Revolución, Conservadurismo, Tradición, in Verbo, série XIII, número 123, Madrid, Março de 1964, p. 293. Tradução nossa.
[25] O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 205.
[26] Atualidades brasileiras, 2ª edição, in Obras completas, 2ª edição, volume 16, São Paulo, Editora das Américas, 1959, p. 371.
[27] Sob o signo da fidelidade: considerações históricas, São Paulo, Pátria-Nova, s/d, p. 4.
[28] Ideias que marcham no silêncio, São Paulo, Pátria-Nova, 1962, p. 76.
[29] Cf. BARBUY, Victor Emanuel Vilela, O nosso nacionalismo, in DOREA, Gumercindo Rocha (Organizador), “Existe um pensamento político brasileiro?” Existe, sim, Raymundo Faoro: o Integralismo!: uma nova geração analisa e interpreta o Manifesto de Outubro de 1932 de Plínio Salgado, São Paulo, Edições GRD, 2015, p. 79.
[30] A missão da Faculdade de Direito na conjuntura política atual, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Vol. 63, São Paulo, 1968, p. 110.
[31] A Nação e o Romantismo, in O problema do ser e outros ensaios, São Paulo, Convívio, Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 1984, p. 276.
[32] O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 209.
[33] Idem, pp. 209-210.
[34] Sobre o idealismo utópico, assim como sobre seu oposto, o idealismo orgânico: BARBUY, Victor Emanuel Vilela BARBUY, Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit.
[35] Balmaceda, São Paulo, Companhia Editora Nacional; Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S.A., 1937, p. 15.
[36] Valores eternos, in Reconquista, ano I, volume I, número 2, São Paulo, 1950, p. 138.
[37] Cf. VIANNA, Oliveira, O idealismo da Constituição, 2ª edição aumentada, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939, p. 12.
[38] Idem, p. 10.
[39] O homem medíocre, Tradução não assinada, São Paulo: Cultura Moderna, 1936, p. 14. Obra originalmente escrita em castelhano.
[40] Carta à Mocidade Brasileira, in O Integralismo em marcha, 1ª edição, Rio de Janeiro, Schmidt, Editor, 1933, p. 12.
[41] Discursos, 3º edição, in Obras Completas, 2ª edição, volume 10, São Paulo, Editora das Américas, 1957, p. 357.
[42] Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit.
[43] La causa diferenciadora de las comunidades políticas – Tradición, Nación e Imperio, cit.
[44] La lección política de Navarra, in Reconquista, ano I, volume I, n. 2, São Paulo, 1950, p. 127. Tradução nossa.
[45] Metapolitica y tradicionalismo. Disponível em: http://disenso.info/?p=1949. Acesso em 30 de junho de 2016. Tradução nossa.
[46] Cambio y Tradición, in Verbo, nº 231-232, Madrid, 1985, p. 114.
[47] In CAMPOS, Fernando (Organizador), Os nossos mestres ou Breviário da Contra-revolução: juízos e depoimentos, Lisboa, Portugália Editora, 1924, p. 147.
[48] Poder local e corpos intermédios, Lisboa, Edições Cultura Monárquica, 1987, p. 48.
[49] Homenagem ao Príncipe Herdeiro do Japão, S.A. Imperial Akihito, e sua esposa Michiko, in Discursos parlamentares (Perfis parlamentares 18 – Plínio Salgado), Seleção e introdução de Gumercindo Rocha Dorea, Brasília, Câmara dos Deputados, 1982, p. 451.
[50] De pai para filho: Elogio da Tradição, cit., p. 138.
[51] Algumas palavras, in Lúcio José dos SANTOS, Philosophia, Pedagogia, Religião, São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1936, p. 7.
[52] Do Poder Moderador: ensaio de Direito Constitucional, 2ª edição, Brasília, Senado Federal, 1978, pp. 38-39.
[53] Nossas Raízes, São Caetano do Sul, Edição do Autor, 2009, epígrafe.
[54] Cf. FERREIRA, Jacinto, Poder local e corpos intermédios, cit., p. 50.
[55] A Ordem Natural, in Ecos Universitários (Órgão Oficial do Centro Acadêmico Sedes Sapientiae), Ano III, nº 13, São Paulo, setembro de 1950, p. 1.
[56] O ritmo da História, cit., p. 205.
[57] Cf. SOUSA, José Pedro Galvão de; GARCIA, Clovis Lema e CARVALHO, José Fraga Teixeira de, Dicionário de Política, cit., p. 533.
[58] Ormai solo un dio ci si può salvare. Intervista con lo “Spiegel”. Trad. italiana de A. Marini. Parma: Guanda, 1987, p. 135. Tradução nossa. Texto originalmente publicado em alemão.
[59] Les hommes de l’éternel, Paris, Editions Mame, 2012.

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 Victor Emanuel Vilela Barbuy, presidente do Grupo de Estudos Perillo Gomes.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Império de Mamon e Império Cristão


Vivemos o fim de uma era, que não é senão a Idade Materialista, ou Idade Burguesa, dominada pelo Espírito da Burguesia e iniciada no século XVI, com a denominada “Reforma” e a consequente quebra da unidade espiritual da Cristandade.

A idade cujo ocaso vivemos tem sido a mais nefasta e demoníaca de todas as idades já vividas pelo Homem, sendo marcada, antes de tudo, pelo primado da Matéria sobre o Espírito, das filosofias da hora sobre a Filosofia Perene, da antitradição sobre a Tradição, do ter sobre o ser, do detentor do capital sobre o sábio e o guerreiro, da Técnica sobre o Homem, do homo oeconomicus sobre o Homem Integral. Caracterizada pela absoluta e funesta separação entre a Economia, de um lado, e a Ética, de outro, esta idade tem sido a idade do culto a Mamon, o falso deus judaico da riqueza e da avareza, e nela o Mundo não tem sido senão um vasto mercado governado pelo dinheiro e seu nefando poder.

Havendo destronado o Cristo e entronizado Mamon, a idade ora agonizante acreditou no progresso ilimitado e buscou a riqueza como um fim em si, afastando-se da Tradição e da Lei Natural. Mas o progresso ilimitado se mostrou uma falácia e a riqueza se concentrou nas mãos de poucos, enquanto muitos vivem na mais absoluta miséria.

Os materialistas, tanto os liberais quanto os comunistas, sonharam edificar o “paraíso terreno”, mas edificaram um verdadeiro inferno dantesco, semeando a fome, a guerra injusta, a miséria, a destruição. E ainda perderam o Paraíso Celeste...

Com efeito, resumem o homem moderno, verdadeiro arquiteto da ruína, as seguintes estrofes do poema Sobrado, de Paulo Eiró:
“O homem sonha monumentos
e só ruínas semeia
para pousada dos ventos” [1].
A Idade Burguesa tem sido caracterizada, desde antes mesmo da “Revolução” (anti)Francesa, pelo domínio das ideologias, isto é, pela ideocracia, definida por Vogelsang como o “domínio de um ponto de vista abstrato e único que – em oposição ao estado de coisas natural e histórico – é estendido por um partido triunfante a toda a vida da nação” [2]. E tem sido caracterizada, mais ainda, pelo mito do progresso indefinido e a consequente rejeição da Tradição e pelo primado do mais grosseiro materialismo, que tem tido no capitalismo a sua face mais nefasta, ressaltando-se que o denominado “socialismo real” não foi senão um capitalismo de Estado, cuja ineficiência foi demonstrada, irretorquivelmente, pelo colapso da União Soviética e dos demais países da chamada “Cortina de Ferro”.

Definido por Julio Menvielle como “um sistema econômico que busca o acréscimo ilimitado dos lucros pela aplicação de leis econômicas mecânicas” [3], o capitalismo é, segundo preleciona o preclaro sacerdote e pensador argentino, o “sistema que busca o lucro ilimitado, para o qual quer ilimitados a produção e o consumo” [4]. Destarte, pode ser o capitalismo definido pela fórmula que usava Santo Tomás de Aquino para condenar todo negócio que busca o lucro como um fim em si: “o acréscimo sem limites das riquezas” [5].

Outra definição de capitalismo, no mesmo sentido, é aquela apresentada por Miguel Reale na atualíssima obra O capitalismo internacional: “capitalismo é o sistema econômico no qual o sujeito da Economia é o Capital, sendo o acréscimo indefinido deste considerado o objetivo final e único de toda a produção” [6].

Isto posto, cumpre ressaltar que, como ensina Gustavo Barroso, o capitalismo não é a propriedade, mas sim “o regime em que o uso da propriedade se tornou abuso, porque cada indivíduo pode, se tiver dinheiro, especular no sentido de fraudar e oprimir os outros”. O capitalismo é, ademais, “o regime em que o uso da propriedade se tornou abuso, porque cada indivíduo pode agir à vontade e produzir sem se preocupar com as necessidades da coletividade, causando o desemprego, as falências, os salários ínfimos e a carestia da vida”. O capitalismo é o regime em que indivíduos ou grupos de indivíduos podem açambarcar as propriedades alheias por meio de trustes, cartéis ou monopólios. “O capitalismo, portanto, em última análise, é um destruidor da propriedade” [7].

Sistema intrinsecamente burguês e, portanto, antitradicional, o capitalismo, ignóbil devorador da pequena indústria e da pequena propriedade, destruidor de famílias e escravizador de homens e de povos, representa, a um só tempo, o Império de Calibã e o Império de Mamon: o Império de Calibã porque este demônio, personagem de Shakespeare em A tempestade, simboliza o materialismo, e o Império de Mamon porque este é, como dissemos, o falso deus judaico da riqueza e da avareza.

O espírito do Império de Calibã e de Mamon, a que podemos denominar, simplesmente, Império de Mamon, é o Espírito Burguês, o espírito do Sr. Grandet e das filhas do pai Goriot, de Balzac; do Harpagão de Molière; do Shylock de Shakespeare; do Scrooge de Charles Dickens (antes, é claro, da visita do fantasma de seu falecido sócio Marley e dos espíritos do Natal Passado, Presente e Futuro). E é, sobretudo, o espírito dos Rothschilds, dos Fuggers, dos Warburgs, dos Kuhns, dos Loebs, e de seus irmãos “revolucionários” como Marx, Lênin, Trótski, Stálin, Lunatcharski, Béria, Yagoda, Molotov, Fidel Castro Ruz e Ernesto Guevara Lynch de la Serna. É, em uma palavra, o espírito da chandala que crucificou o Cristo e controlou, por séculos, o tráfico de escravos e que hoje, senhora do capital especulativo, escraviza todos os povos do planeta e crucifica aqueles que se levantam contra ela.

O Império de Mamon é o mamonismo de que nos fala Gottfried Feder, isto é, a grave enfermidade que tudo atinge, enfermidade de que ora padece toda a Humanidade e que se constitui em uma devastadora pandemia, em um veneno corrosivo que ataca a todos os povos do planeta. O mamonismo deve ser compreendido, segundo o economista alemão, como, por um lado, o poder mundial do dinheiro, a potência supra-estatal e supranacional que reina sobre o direito de autodeterminação dos povos, a “internacional dourada”, e, por outro lado, como um estado de espírito que se apoderou de ampla parcela da população e que se caracteriza pela insaciável ânsia de lucro e por uma concepção de vida orientada exclusivamente aos valores materiais, que levou e continuará levando a uma alarmante decadência moral [8].
Em uma palavra, o sentido do Império de Mamon é, como diria Plínio Salgado, se referindo ao falso deus judaico, “o terrível e trágico sentido do materialismo capitalista, que nos conduz aos horrores do materialismo socialista de um Estado que assume as rédeas do governo de cada um, quando em cada um despareceu a capacidade de governar-se” [9].

***

Fundado na avareza, pecado definido por Santo Tomás como o “desejo imoderado de possuir as coisas exteriores” [10], o capitalismo, assim como ela, deu origem a toda uma prole de pecados. A avareza engendrou, como tantas outras filhas, a violência, a falácia, o perjúrio, a fraude, a traição, e o capitalismo, como ressalta o Padre Julio Menvielle:

“Peca de violência, porque, com sua fome de concentração, devora a pequena indústria e a pequena propriedade; peca de falácia, porque promete a libertação de todo o gênero humano e cada dia o submerge mais profundamente na miséria, pois a concentração por um lado corresponde à miséria pelo outro; peca de perjúrio, quando à falácia se une o juramento, e o capitalismo rubrica com o crédito seu engano (...); peca de fraude, porque, com o crédito ou empréstimo a juros se apodera das poupanças do gênero humano e as maneja como se fosse proprietário, porque submete o trabalhador à lei da fome, e porque assegura um consumo mau e caro; peca, finalmente, de traição, porque aniquila a pessoa humana, fazendo do homem um mero indivíduo, uma simples roda na gigantesca máquina do edifício econômico, porque quebra a família, amontoando nas fábricas, como em tropilha, a homens e mulheres, porque destrói a educação com a estandardização da escola e a suposição da aprendizagem” [11].

Em resumo, conclui o autor de Concepção católica da política que o capitalismo, tanto em sua forma liberal quanto em sua forma marxista, é como que a “erupção de toda uma família de pecados, é o reino de Mamon” [12].

O capitalismo, que mercantilizou a Propriedade, o Trabalho e o próprio Homem, tem, como sublinha Plínio Salgado, uma concepção utilitária da vida, sem consideração alguma pelo fim transcendente da Pessoa Humana [13]. É o produto por excelência da Civilização Burguesa, que, na expressão do magno pensador patrício, “voltou as costas a Deus e pôs o fundamento da sua grandeza no orgulho incomensurável dos Homens” [14].

O capitalismo, que, como aduz Gustavo Barroso, é o pai de todas as terríveis lutas que têm se processado na sociedade contemporânea [15], tem no liberalismo econômico a sua ideologia por excelência.

O liberalismo econômico, intentando chegar, por meio da liberdade econômica absoluta, à auto-regulamentação do mercado, só gerou miséria, injustiça social e revolta entre os despossuídos, alimentando o comunismo e outras ideologias espúrias que se nutrem justamente das injustiças geradas pelo liberalismo. Aliás, como ressalta Plínio Salgado, “o maior dos comunistas do mundo é o Espírito Capitalista”, que se traduz em atitudes e ações deletérias cujo efeito é a dissolvência da denominada Civilização Ocidental, que alguns ainda insistem em denominar Civilização Cristã. O Espírito do Capitalismo é, ainda segundo o autor da Vida de Jesus, “o espírito do lucro”, “do lucro pelo lucro”, “do lucro que manobra a grande engrenagem chamada ‘especulação’” e que interfere nos costumes sociais e “no próprio seio das famílias, atacando na raiz a estabilidade dos lares” [16].

Mesmo havendo sido demonstrada, na prática, a inviabilidade do liberalismo econômico, muitos são aqueles que ainda creem, religiosamente, em suas premissas. A exemplo do marxismo, o liberalismo se transformou em uma religião, sendo, aliás, somente compreensível sua sobrevivência como ideologia em virtude do caráter religioso que possui.

Nós outros, que combatemos o marxismo sobretudo em razão de ele não se haver libertado dos princípios do liberalismo, constituindo um mero produto da Civilização Burguesa, denunciamos no liberalismo a ideologia antitradicional que promoveu a exploração do homem pelo homem e engendrou o comunismo e outras ignóbeis ideologias nutridas por suas mazelas. E ressaltamos que nossa compreensão da questão social se funda na Doutrina Social da Igreja, que, especialmente a partir da Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, tem atacado o liberal-capitalismo e defendido galhardamente a autêntica Justiça Social, a mesma Justiça Social rejeitada pelos liberais e neoliberais, a exemplo de Hayek. Este, principal expoente da chamada Escola de Viena ao lado de Von Mises, dedicou a tal tema o segundo volume de sua trilogia Direito, legislação e liberdade, intitulado A miragem da justiça social. É, aliás, com bastante apreensão que vemos inúmeros católicos, mesmo alguns ditos tradicionalistas, preferindo dar ouvidos à Escola de Viena a seguir a Doutrina Social da Igreja, tão magistralmente exposta em encíclicas como a supracitada Rerum Novarum e a Quadragesimo Anno, de Pio XI.

Em resposta a esses católicos equivocados e falsos tradicionalistas, que interpretam erroneamente o Princípio de Subsidiariedade, usando o mesmo para justificar o liberalismo econômico, e que defendem o latifúndio e o Direito Absoluto de Propriedade, afirmamos:

1 – O Princípio de Subsidiariedade consiste em as sociedades maiores, particularmente o Estado, auxiliarem e complementarem as atividades das pessoas e dos Grupos Sociais Naturais tanto no campo econômico quanto nos demais setores da vida humana [17]. Com efeito, pondera Pio XI, na Encíclica Quadragesimo Anno, de 1931, que “verdade é, e a história bem o demonstra, que, em virtude da mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam mesmo as pequenas”. Permanece, contudo, imutável aquele solene princípio da filosofia social segundo o qual, do mesmo modo que é injusto subtrair aos indivíduos aquilo que eles podem efetuar com a própria iniciativa, para o confiar à coletividade, o ato de confiar a uma sociedade maior e mais elevada aquilo que sociedades menores e inferiores podem conseguir representa uma injustiça, além de um grave dano e perturbação da ordem social [18].

É, portanto, absurdo invocar o Princípio de Subsidiariedade para defender o Estado mínimo liberal e atacar a intervenção do Estado na Economia. Aliás, como preleciona Pio XII, o Estado é a principal coluna de sustentação da sociedade humana ao lado da Família [19], tendo a missão de “controlar, ajudar a regular as atividades privadas e individuais da vida nacional, a fim de as fazer convergir harmoniosamente para o Bem Comum” [20].

2 – O latifúndio é, como demonstra Heraldo Barbuy, uma forma de “exploração agrícola tipicamente capitalista”, que “se aproxima do tipo da usina industrial urbana até pela monocultura, que é o mesmo que produzir uma só coisa em massa e em série como na indústria”, não podendo, pois, formar uma “verdadeira população rural”. O latifúndio, ainda segundo preleciona o autor de O problema do Ser, produz tão somente “o escravo ou o operário”, não criando, mas antes negando “o mundo rural que sustenta a tradição e os valores metafísicos, como sustenta também a estabilidade econômica e social”. Por fim, o latifúndio é apenas “uma pura criação da economia capitalista”, que nada tem que ver com o feudalismo e que, aliás, teria sido impossível no regime feudal, o qual “supunha o camponês radicado ao solo, a supremacia dos bens imobiliários e toda uma ordem social fundada nos direitos da família” [21].

Registre-se, com efeito, que, como pondera o insigne filósofo e sociólogo patrício, toda a fase de instituição orgânica da atual Sociedade se encontra na denominada “Idade Média, com o seu sentido eminentemente familial da propriedade e do uso do solo, com a clara noção da instrumentalidade e do fim social da propriedade, por um lado, e da sua inviolabilidade, por outro” [22], e que, durante a referida época, a pequena propriedade se desenvolveu em grande escala, sendo que vilões, “routiriers” e servos eram, na prática, proprietários do solo por eles lavrado [23], ao contrário, é claro, dos empregados dos latifúndios.

3 – O Direito de Propriedade é um Direito Natural da Pessoa Humana, mas está condicionado ao exercício de seu duplo caráter, denominado individual e social, posto que deve atender tanto aos interesses do proprietário quanto da coletividade [24], pois, como dispõe o artigo 74 do Código Social de Malines, publicado em 1927 pela União Internacional de Estudos Sociais, sob a presidência do Cardeal Mercier, seguindo os ensinamentos de Santo Tomás, Mestre da autêntica Doutrina Social da Igreja, “os bens materiais deste mundo estão destinados pela Providência divina, em primeiro lugar, para a satisfação das necessidades sociais de todos” [25].

Em outras palavras, como afirma Gustavo Barroso na Carta Brasileira do Trabalho, “O DIREITO DE PROPRIEDADE não pode nem deve ser exercido de modo injusto, em detrimento de outros e da comunhão social. Por isso, ao DIREITO DE PROPRIEDADE corresponderão DEVERES, que o ESTADO INTEGRAL regulará e determinará, visando a JUSTIÇA SOCIAL” [26].

A limitação do Direito de Propriedade pelo Estado é defendida, também, por Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum, onde o referido Pontífice observa que a autoridade pública pode regular o uso da Propriedade e conciliá-lo com o Bem Comum e que “Deus confiou à indústria dos homens e às instituições dos povos a demarcação da propriedade individual” [27], e por Pio XI, que, na Encíclica Quadragesimo Anno, ensina que a autoridade pública, iluminada sempre pela luz natural e divina, e pondo os olhos tão somente naquilo que exige o Bem Comum, pode decretar minuciosamente aquilo que seja lícito ou ilícito aos proprietários no uso de seus bens [28].

Não podemos, assim, deixar de fazer nossas as palavras de D. Octavio Nicolás Derisi, quando este sábio prelado e filósofo argentino, mestre incontestável da Filosofia Perene e fundador da Sociedade Tomista Argentina e da Universidade Católica Argentina, proclama que, diante do liberalismo econômico, que leva a um capitalismo que não conhece a liberdade e a dignidade do Ente Humano e que o submete a suas “exigências escravizantes, faz-se mister defender o direito da pessoa à livre escolha do trabalho, às condições humanas do mesmo e à justa retribuição para seu sustento e para o da família”, e mormente quando sustenta a necessidade de defesa do “sentido humano ou social da propriedade”. Este, segundo preleciona o autor de Fundamentos metafísicos da Ordem Moral e de O último Heidegger, não faz do proprietário dono absoluto, posto que os bens materiais, embora objeto de propriedade individual, jamais perdem sua natural destinação de servir ao bem de todos os homens. Por conseguinte, “impõe-se defender o direito do Estado de fiscalizar o cumprimento do fim social da propriedade e compelir todos os proprietários a se submeterem ao bem comum, isto é, às condições necessárias para que a propriedade ceda e contribua para o bem de todos e não apenas dos que exercem o direito de propriedade” [29].

Ninguém pode, outrossim, ser ao mesmo tempo defensor do Direito Absoluto de Propriedade e partidário da Doutrina Social da Igreja.

***

O Estado pode interferir na vida econômica da Nação, suprindo carências, corrigindo injustiças, criando condições para o desenvolvimento econômico das pessoas e dos Grupos Sociais Naturais. E, em sociedades como a nossa, marcadas por gritantes injustiças sociais e por desvios do poder econômico, a interferência do Estado passa a se impor como um dever. Ela é necessária, ademais, para afirmar nossa soberania ora ameaçada pelo avanço das forças do imperialismo econômico-financeiro. Este, ao contrário do que se supõe, está hoje representado, no Brasil, em primeiro lugar, não pelas forças econômico-financeiras dos Estados Unidos da América e da Europa Ocidental, mas sim pelas empresas estatais, travestidas ou não de particulares, da República Popular da China, que, silenciosamente, têm se apoderado não somente de inúmeras propriedades agrícolas brasileiras, mas também de jazidas de ferro, ao mesmo tempo em que procuram participar da exploração de petróleo brasileira.

Com efeito, não devemos permitir que a China ou qualquer outra nação se apodere de nossas reservas de ferro, de petróleo e de outros bens que, por serem vitais à segurança e à independência econômica do País, devem ser explorados exclusivamente pelo Estado Nacional Brasileiro.

Sustentando que a Soberania é a suprema autoridade social, absolutamente necessária para o Bem Comum dos Entes Humanos, tanto no plano espiritual quanto no temporal, nela estando contidos, como ensina Santo Tomás de Aquino, todos os poderes necessários ao governo da Sociedade, da mesma forma que na unidade de Deus se encontram reunidas todas as suas perfeições [30], reafirmamos a necessidade de intervenção do Estado na Economia, como condição precípua da manutenção de nossa Soberania.

***

Inquebrantável é a nossa certeza de que, um dia, o Brasil despertará de seu sono, se levantando contra o grande capital, contra a plutocracia internacional controladora da imprensa e das organizações internacionais, a exemplo da ONU, do FMI e do Banco Mundial, e responsável por todas as principais guerras dos últimos séculos.

Igualmente inquebrantável é a nossa certeza de que, quando este grande Império quebrar as cadeias da escravidão em face da superpotência supra-estatal e supranacional em que se constitui o Império de Mamon, todos os povos rejubilar-se-ão e muitos deles terão a coragem de seguir o seu exemplo, também se libertando do jugo da usura e do capital especulativo. E, assim, cairá por terra o Império de Mamon e nascerá o Novo Império Cristão, juntamente com o Estado Ético Orgânico Integral Cristão, sendo, então, restaurado, no plano filosófico, o primado da Filosofia Perene; no campo jurídico, o Direito Natural Tradicional e, no sócio-econômico, a Sociedade Orgânica e a Economia Orgânica. Esta última, a que também podemos denominar Economia Perene, é a Economia a serviço não do dinheiro, mas sim do Homem e do Bem Comum, ambos subordinados a Deus, fim último da Pessoa Humana.

A Economia Perene, Economia Cristã, ou Economia Nova, não é senão a Economia Tradicional, a um só tempo anti-individualista e antitotalitária, que não é princípio nem fim, mas apenas um meio, um instrumento da Pessoa Humana e do Bem Comum, ambos subordinados, como acabamos de ver, a Deus, fim último da Pessoa Humana.

Subordinada à Moral, a Economia Tradicional é caracterizada pela harmonia entre o Capital e o Trabalho e nela o Estado, de acordo com o Princípio de Subsidiariedade e dentro dos mais rigorosos preceitos de Justiça Social, intervirá sempre que for insuficiente a iniciativa privada ou estiverem em jogo interesses coletivos. Tal intervenção dar-se-á, por exemplo, por meio do financiamento de obras públicas, pelo apoio às Cooperativas e pela criação de bancos populares que, sem cobrar juros, financiarão construções e o desenvolvimento da agricultura familiar, da pequena indústria e do pequeno comércio, tendo como objetivos a defesa da Família e a ampliação do Direito de Propriedade ao maior número possível de famílias.

São estes os rumos de nossa Marcha, que não é senão a Marcha da Revolução, da mais sincera, heroica e profunda Revolução que jamais se ergueu contra o Império de Mamon e a chandala que o controla.

Notas:
[1] EIRÓ, Paulo. Poesias. Coletânea inédita, organizada, prefaciada e anotada por José A. Gonsalves. In SCHMIDT, Afonso. A vida de Paulo Eiró. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940, p. 168.
[2] VOGELSANG, apud GAMBRA, Rafael. La Monarquía Social y representativa em el pensamiento tradicional. Madri: Ediciones Rialp, S. A., 1954, p. 143.
[3] MENVIELLE, Julio. Concepción católica de la economia, p. 5. Disponível em: http://www.statveritas.com.ar/Autores%20Cristianos/Meinvielle/Meinvielle.htm. Acesso em 01/06/2010.
[4] Idem, loc. cit.
[5] AQUINAS, Sanctus Thomas. Summa Theologica. IIa, IIae, q. 105, art. 4º.
[6] REALE, Miguel. O capitalismo internacional. 1ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1935, p. 87.
[7] BARROSO. Gustavo. O que o Integralista deve saber. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, S.A, 1937, p. 135.
[8] FEDER, Gottfried. Manifiesto para el quebrantamiento de la servidumbre del interés del dinero. Disponível em: 
http://www.freewebs.com/ligafederalnr/cultura.htm. Acesso em 01/06/2010.
[9] SALGADO, Plínio. Reconstrução do Homem. 1ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1957, p. 25.
[10] AQUINAS, Sanctus Thomas. Summa Theologica. IIa, IIae, q. 118, art. 2º.
[11] MENVIELLE, Julio. Concepción católica de la economia, cit., pp. 8-9.
[12] Idem, p. 9.
[13] SALGADO, Plínio. Mensagem às pedras do deserto. 3ª ed. In SALGADO, Plínio. Obras Completas. 2ª ed., vol. XV. São Paulo: Editora das Américas, 1957, p. 289.
[14] SALGADO, Plínio. O Ritmo da História. 3ª ed. In SALGADO, Plínio. Obras Completas. 2ª ed., vol. XV. São Paulo: Editora das Américas, p. 289.
[15] BARROSO, Gustavo. Espírito do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, S/A, 1936, p. 271.
[16] SALGADO, Plínio. Mensagem às pedras do deserto, cit., p. 226.
[17] Nesse sentido: SOUSA, José Pedro Galvão de; GARCIA, Clovis Lema; CARVALHO, José Fraga Teixeira de. Dicionário de Política. São Paulo: T.A. Queiroz, 1998, p. 510.
[18] PIO XI. Quadragesimo Anno. Disponível em:. http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno_it.htmlAcesso em 02/06/2010. Acesso em 02/06/2010.
[19] PIO XII. La Elevatezza, discurso aos novos cardeais sobre a supranacionalidade da Igreja (20 de fevereiro de 1946). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/speeches/1946/documents/hf_p-xii_spe_19460220_la-elevatezza_it.html. Acesso em 02/06/2010.
[20] Idem. Summi Pontificatus. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20101939_summi-pontificatus_it.html. Acesso em 02/06/2010.
[21] BARBUY, Heraldo. A mobilização do solo e a instabilidade social. In Revista do Arquivo Municipal. Ano XVI, vol. CXXXII, São Paulo, Divisão do Arquivo Histórico do Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura de São Paulo, março de 1950, p. 28.
[22] Idem, p. 15.
[23] Idem, p. 19.
[24] Nesse sentido: LEONE XIII. Quod Apostolici Muneris. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_28121878_quod-apostolici-muneris_it.html. Acesso em 02/06/2010; Idem. Rerum Novarum. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_it.html. Acesso em 02/06/2010; PIO XI. Quadragesimo Anno, cit.; SALGADO, Plínio. Direitos e deveres do Homem. 4ª ed. In SALGADO, Plínio. Obras Completas. 2ª ed., vol. V. São Paulo: Editora das Américas, 1957, p. 260; BARROSO, Gustavo. Carta Brasileira do Trabalho.In BARROSO, Gustavo. Integralismo e Catolicismo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Limitada, 1937, p. 281.
[25] União Internacional de Estudos Sociais. Código Social de Malines. In BARROSO, Gustavo. Integralismo e Catolicismo, cit., p. 252.
[26] BARROSO, Gustavo. Integralismo e Catolicismo, cit., p. 282.
[27] LEONE XIII. Rerum Novarum, cit.
[28] PIO XI. Quadragesimo Anno, cit.
[29] DERISI, Octavio Nicolás. Da ilusão liberal à escravidão socialista. In Hora Presente. Ano VI, nº 17, dezembro de 1974, p. 128. 
[30] AQUINAS, Sanctus Thomas. Compendium Theologiae. Pars I, cap. 22, nº 47.

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Victor Emanuel Vilela Barbuy, presidente do Grupo de Estudos Perillo Gomes.