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domingo, 25 de junho de 2017

O Estado segundo Santo Agostinho: uma concepção católica do poder


A Igreja concebe o Estado como indispensável ante a condição pecadora do homem dentro do contexto da cristandade e da teoria dos dois gládios 

"O Evangelho nos ensina que há na Igreja e no poder da Igreja dois gládios: o espiritual e o temporal. Quando os Apóstolos disseram: “Temos aqui dois gládios'' – aqui, isto é, na Igreja – o Senhor não respondeu: “É demasiado”. Pelo contrário, respondeu: “isto basta”. Por certo, aquele que nega que o gládio temporal esteja no poder de Pedro, desconhece a palavra do Senhor que disse: “Recoloca tua espada na bainha. Portanto, um e outro gládio estão no poder da igreja, o espiritual e o temporal; mas este deve ser tirado para a Igreja, aquele pela Igreja; um pela mão do sacerdote, o outro pela mão dos reis e dos soldados, mas com o consentimento e o beneplácito do sacerdote." - Bula Unam Sanctam, apud Marie-Hippolyte Hemmer, verbete Boniface VIII, in “Díctionnaire de Théologie Catholique”, Tomo II, col. 999s.

Há um debate hoje em curso no mundo sobre o papel do estado que põe de um lado aqueles de tendência mais liberal e do outro os de espírito coletivista; no primeiro caso defende-se um modelo de estado mínimo que vai desde uma visão de liberalismo clássico – onde o estado intervém  pouco na economia, no máximo estipulando uma ou outra norma legal para assegurar a propriedade privada e o processo de acumulação de capital por parte da burguesia – até o mais extremado anarcocapitalismo que chega a defender o fim, puro e simples, de qualquer organização estatal; no segundo caso postula-se o estado máximo indo dos socialdemocratas, favoráveis a uma intervenção contínua do estado seja na economia, seja na organização da sociedade, até os mais extremados coletivistas que querem um estado francamente socialista, ficando aí a propriedade privada sob controle total da organização burocrática. Dizia Ezra Pound : criam duas mentiras e nos fazem discutir qual delas é a verdade".A frase de Pound nos remete ao falso dilema contemporâneo doestado mínimo x estado máximo”. O dilema é falso porque mais importante que o tamanho ou a forma do estado é o seu conteúdo. Platão deixa evidenciado no diálogo As Leis” que a discussão sobre a natureza do poder político, exige, antes de tudo a discussão sobre as leis que darão forma substancial ao mesmo. O debate político atual está alienado da realidade das coisas: antes de analisarem quais são as leis sobre as quais um estado deve estar fundado, discutem seu tamanho – se deve ser mais liberal ou mais intervencionista – ou sua estrutura – monárquica, republicana, democrática, etc.  Tal contexto demonstra a ilusão sobre a qual se fundam as considerações hodiernas sobre política: deixando de lado todo aspecto moral do Estado os sujeitos que formam a opinião pública reduzem toda a discussão a um falatório sobre preços, mercados, liberdades, produção, formalismos( como a defesa, em si e, tomada abstratamente,  da monarquia ou da democracia, desvinculadas de qualquer apreciação prática, histórica ou moral sobre a viabilidade de tais regimes), etc. É preciso, então, que partamos de outros pressupostos para entender qual a autêntica natureza do estado. O primeiro pressuposto a ser considerado é que o homem é um ser social. Isso é de tal evidenciabilidade que não é preciso insistir muito sobre tal ponto. A sociabilidade do homem funda, desde suas origens, um conjunto de laços de dependência: um homem largado a si mesmo, no bojo do mundo natural teria pouquíssima chance de sobreviver. A tese iluminista de um estado natural do homem, anterior ao estado social, é insustentável. Todo homem nasce dentro de um quadro de relações que o antecede e que torna possível sua sobrevivência em meio a natureza hostil.  A tese liberal da liberdade do indivíduo não passa de uma abstração abusiva e falsa. A pura liberdade do indivíduo, que decide por si mesmo entrar num pacto social, só existe como idéia, nunca como coisa real. A liberdade humana se articula entre pessoa e sociedade, no interior de uma relação e não como algo em si. Tal pressuposto nos leva a conclusão de que o estado não nasce de uma decisão arbitrária dos indivíduos, de uma criação humana, de um acordo prévio. O estado não nasce de um contrato. Não nasce de uma escolha. O estado nasce de uma necessidade natural, por um lado, e de uma necessidade moral por outro lado.
Santo Agostinho em sua obra A cidade de Deus” explica que, em termos políticos há três níveis de organização: a casa, a urbe, o orbe. A casa remete a família e a tribo, a urbe remete a cidade, e o orbe remete a noção de império universal. Agostinho viveu entre o século IV e V D.C., no fim do Império Romano. Era um grande conhecedor da história romana, sobre a qual se debruça na obra supra citada. A idéia de relacionar o poder político a estes três níveis faz todo o sentido quando entendemos o que foi a história do desenvolvimento de Roma que inicialmente fora um “estado tribal” no Lácio, ou seja, uma federação de famílias extensas aparentadas entre si que organizaram um poder público para regular suas relações. Vemos aí uma relação orgânica entre a cidade romana e as famílias romanas, entre casa e urbe. Na civitas romana antiga o poder era dividido entre os patriarcas – os chefes de família e líderes tribais – e organizado em torno do “Senatus”( Senado: de senil ou velho, quer dizer o conselho, o órgão legislativo de Roma formado pelos mais velhos). O estado tribal romano nascera, então, dafraternitas”( da irmandade, da ascendência comum, dos laços de sangue): ele foi uma expressão orgânica da estrutura familiar, das necessidades das tribos do Lácio de organizaram uma defesa de seu território, recursos, vida, propriedade, costumes, leis, etc. Aqui não encontramos o “indivíduo” das teorias liberais que busca, por meio de um pacto social, assegurar sua liberdade e propriedade; encontramos famílias e tribos, nas quais os indivíduos são integrados, não como átomos, mas como pessoas com responsabilidades e papéis distintos, pessoas que só tem sua liberdade e propriedade asseguradas no interior da “fraternitas” tribal da qual depende e para a qual vive. Nesse contexto a fidelidade a pátria e ao estado faz todo sentido: o estado aí é a extensão da casa paterna, a pátria é a terra dos pais, onde seus costumes são respeitados como sacrossantos. O estado aí é um poder que existe para proteger a família; a urbe existe para a casa. Além destes três níveis de organização do poder político, Santo Agostinho ressalta o papel do estado perante a condição de pecado do homem. Ou seja: além do estado nascer de uma organicidade natural, de uma ordem exigida para a manutenção das “casas”, há uma razão de ordem moral para sua existência: a concupiscência humana, ou seja, nossa tendência ao mal e a desordem. Agostinho em sua filosofia dá um peso decisivo à vontade humana; o homem é o que ama ele dirá. E os amores humanos são variados, múltiplos, opostos e conflitivos. Segundo Sto. Agostinho a vida comunitária ou social, para que se funde numa boa ordem e na justiça, depende de uma régua de valores objetivos; a ordem exige que cada coisa esteja no seu devido lugar; a ordem do corpo é o ajustado funcionamento de suas partes, a da alma é a calma de seus apetites e paixões(moderação); a ordem justa, em termos sociais, exige uma dupla norma: não fazer mal a ninguém e socorrer a quem padece necessidade. Estas normas exigem que se dê primeiro cuidado aos próprios familiares, mantendo a paz doméstica. O marido deve cuidar da esposa, os pais dos filhos, os patrões dos criados. Agostinho assevera que é dever do pai de família castigar os que perturbam esta paz. As mesmas regras devem presidir a família do estado. Agostinho deixa claro que o estado tem função moral precípua. Mais importante que discutir se ele deve ser máximo ou mínimo, monárquico ou republicano, é fulcral entender seu papel moral e em que lei deve fundar sua ética. A vida moral, para Sto. Agostinho, se traduz em atos pelos quais tomamos posição ante as coisas: ou fruímos delas ou nos utilizamos; fruir é afeiçoar-se a uma coisa por amor a ela mesma. Usar é servir-se de algo para atingir um fim. Mas nem todos os objetos são dignos de serem amados. O uso ilícito é abuso. Há amores de coisas más e uso de coisas más. O papel primário das leis é proibir o usufruto do que é mal. O papel das leis é fomentar a virtude. O papel do estado é criar um ambiente social tal onde a virtude seja premiada e o vício castigado. Como o homem é um ser que tende ao amor das coisas más, a necessidade de um poder público que castigue o pecado e mantenha uma ordem moral mínima é um corolário moral. Dentro de uma perspectiva cristã o estado se faz essencial para a boa ordem da sociedade. Sem um poder que reprima o vício e que proteja a casa e a urbe não há verdadeira paz ou justa ordem num mundo decaído e sempre ameaçado pelo poder do pecado. A bondade natural do homem foi perdida em Adão; as teses liberais se alimentam da miragem de Rosseau sobre a pureza de nossa natureza que, deixada a si, faria tão só o bem. Essa miragem é que sustenta o liberalismo político de direita –  que imagina que, de um pacto livre das vontades( ou seja, das liberdades democráticas), nasceriam somente leis justas e boas – e os coletivismos de esquerda – que sonham com uma humanidade futura onde o estado desapareceria de vez, substituído por um cooperativismo anarquista, uma sociedade perfeita sem a ameaça do mal ou do vício. No fim das contas as duas cosmovisões políticas almejam o mesmo: um paraíso anarquista. Não nos deve surpreender, portanto, que as sementes do comunismo germinem no solo do mundo liberal-burguês. A solução para tais erros desastrosos é a concepção católica de estado.


 Bibliografia
Platão. Diálogo “ As leis”.  Aguilar Ediciones, Madrid, 1966.

Boehner, Philoteus. História da Filosofia Cristã. Vozes, Petrópolis, 2009