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segunda-feira, 29 de abril de 2019

Os tipos de Liberalismo

Texto da obra "O liberalismo é pecado" de Dom Félix Sardá y Salvany, que fora fortemente embasada no Syllabus de Pio IX e recebeu louvores da Santa Sé.

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Nesta variedade, ou melhor, confusão entre matizes e meias-tintas que oferece a variedade família do liberalismo, haverá sinais ou notas características com que distinguir facilmente o que é liberal do que não é? Eis outra questão muito prática também para o católico de hoje e que de um modo ou de outro o teólogo moralista tem de resolver frequentemente.

Dividiremos para estes fins os liberais (sejam pessoas ou escritos) em três classes:


  1. Liberais avançados;
  2. Liberais moderados [1];
  3. Apenas eivados de liberalismo[2].

1- Liberais Avançados:
Ensaiemos uma descrição semi-fisiológica de cada um destes tipos. É estudo que não carece de interesse. O liberal avançado conhece-se desde logo, porque não trata de negar nem encobrir sua maldade. É inimigo formal do Papa e dos padres e de toda a gente da Igreja; basta-lhe que qualquer coisa seja sagrada para excitar seu desenfreado rancor. Procura dentre os periódicos os mais desbragados; vota  entre os candidatos, os mais abertamente ímpios; aceita seu funesto sistema até as últimas consequências. Faz gala de viver sem prática alguma de religião, e a muito custo a tolera em sua mulher e filhos. Costuma pertencer a seitas secretas e morre geralmente sem socorros alguns da Igreja.

2- Liberais Moderados:
O liberal moderado ou manso costuma ser tão mau como o primeiro, porém cuida bastante em não parecê-lo. As boas formas e as conveniências sociais são tudo para ele; salvo este ponto, não lhe importa muito o resto. Incendiar um convento não lhe parece bem; apoderar-se do solar do convento incendiado é para ele coisa já mais regular e tolerável. Que um jornaleco qualquer desses de bordel venda suas blasfêmias em prosa, verso ou gravura a dez réis é um excesso que ele proibiria e até lamenta que não o proíba algum governo conservador; porém, que se diga o mesmo inteiramente em frases cultas, um livro de boa impressão ou em um drama de sonoros versos, sobretudo se o autor é um acadêmico ou semelhante, já não oferece inconveniente[3]. Ouvir falar em clubes dá-lo calafrios, porque ali, diz ele, se seduzem as massas e se subvertem os fundamentos da ordem social[4]; porém, ateneus livres podem muito bem consentir-se. porque a discussão científica de todos os problemas sociais, quem há de estranhar? Escola sem catecismo é um insulto ao país católico que a paga; porém, Universidade católica, isto é, com sujeição inteira ao catolicismo, quer dizer, ao critério da fé, isso deve deixar-se para os tempos da Inquisição. O liberal manso não aborrece ao Papa, e só não acha bem certas, pretensões da cúria romana e certos extremos de ultramontanismo que não condizem bem com as ideias de hoje. Gosta dos padres, sobretudo dos ilustrados, isto é, dos que pensam à moderna como ele; porém os fanáticos ou reacionários, evita-os ou lastima-os. Vai à Igreja e recebe até os sacramentos; porém sua máxima é que na Igreja se deve viver como cristão, mas fora dela convém viver com o século em que nasceu e não se obstinar em remar contra a corrente. Vive assim entre duas águas, costuma morrer com o sacerdote ao lado, porém com a biblioteca abarrotada de livros proibidos.

3- Eivados de liberalismo
O católico simplesmente eivado de liberalismo conhece-se em que, sendo homem de bem e de práticas sinceramente religiosas, respira, todavia liberalismo falando ou escrevendo ou trazendo-o entre as mãos. Poderia dizer ao seu modo como Mme. Savigné: "Não sou a rosa, mas estive junto dela e tomei algo de seu perfume". O verdadeiramente eivado discorre, fala e obra como liberal deveras, sem que ele mesmo, o pobrezinho, o deixe de ver. O seu forte é a condado; este homem é a caridade em pessoa. Como aborrece as exagerações da imprensa ultramontana! Chamar de mau a um homem que difunde más ideias parece a esse singular teólogo um pecado contra o Espírito Santo. Para ele não há mais que extraviados. Não se deve resistir nem combater: o que se deve é atrair. "Aforgar o mal com a abundância de bem" é a sua fórmula favorita[5], que leu um dia em Balmes e foi a única coisa do grande filósofo catalão que lhe ficou na memória. As invectivas espantosas contra o farisaísmo dir-se-ia que as tem por excessos de gênio e de zelo do divino Salvador; apesar de que sabe usá-las ele mesmo rijamente contra os irritáveis ultramontanos, que com suas exagerações comprometem a cada dia a causa de uma religião que é todo paz e amor. [...]

Não conhece outra tática senão a de atacar de lado, que em religião costuma ser a mais cômoda, porém não a mais decisiva. Bem quisera ele vencer, porém a troco de não ferir o inimigo, nem causar-lhe mortificação ou enfado. O nome de guerra irrita-lhe os nervos, mas acomoda-se ele a pacífica discussão. Está pelos círculos liberais, onde se discursa e se delibera mais do que pelas associações ultramontanas, onde se dogmatiza e censura. Numa palavra, se por seus frutos se conhece o liberal fero ou manso, por suas afeições se distinguirá, principalmente o eivado de liberalismo.[...]

4- Conclusão:
Resumindo em poucas palavras os traços mais característicos de sua respectiva fisionomia, diremos que o liberal avançado ruge com o seu liberalismo; o liberal moderado esconde, o pobre eivado de liberalismo suspira e faz lamúrias.
Todos são maus, como dizia de seus pais aquele velhaco da fábula; porém ao primeiro paralisa-o muitas vezes o seu próprio furor; ao terceiro a sua condição híbrida, de si infecunda e estéril. O segundo, o pior, é o tipo satânico, por excelência, o que em nossos tempos produz o verdadeiro estrago. 
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Notas de rodapé:
1 - Os assim chamados conservadores ou conservadores liberais.
2- Por eivado de liberalismo, refere-se a um tipo de  liberalismo prático, em que a afeição pessoal e o apreço pela respeitabilidade pública  suplanta o amor pela Verdade.
3- Há um certo apreço por tradições humanas e por uma ideia de alta cultura.
4- Aqui é uma possível referência a Edmund Burke, que em suas "Reflexões sobre a revolução na França", critica como agitadores os membros do clube de Old Jewry.
5- O Concílio Vaticano II seria um concílio eivado de liberalismo.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Por que anti-liberais devem entrar no debate econômico.

Por Bóris

Quase sempre vejo os meus amigos nacionalistas e tradicionalistas criticando o liberalismo econômico, muitas vezes - talvez a maioria delas - de forma muito acertada e, n;ao raramente, se dando bem em alguma discussão com algum liberal. Só há um problema nisso: Os nacionalistas conservadores e os tradicionalistas quase sempre vencem por meio de uma argumentação meta-econômica.

Eu, como qualquer pessoa cuja visão de mundo de ampara no respeito à tradição, à religião e ao nosso modo de ser como povo, não desconsidero a importância da metafísica e dos conceitos de justo, injusto, bem e mal, aplicados ao domínio econômico. Hoje em dia, até economistas progressistas como o pós-keynesiano Richard Chase e o novo keynesiano Dani Rodrik se preocupam com estes aspectos. Contudo, impugnar do ponto de vista moral, teológico e metafísico o liberalismo econômico não basta.

Você pode dizer a um gatuno que roubar é um pecado,  que é um atentado ao sétimo mandamento; mas se sua situação dele for de pobreza, e se sua sociedade acima de tudo preza pelo consumismo ostentador, e se ele for uma pessoa psicologicamente abalável, as condições que permitem que ele furte bens e dinheiro, continuarão a existir.

Você pode agir como o teólogo moral e dizer - muito acertadamente - que ele deve contentar-se com o pouco que tem, pois, "de que vale ao homem conquista o mundo e perder a sua alma?" (Mt 8, 36). Mas vai se esquecer que, por vezes, a opulência dos ricos é motivo de escândalo para os pobres, e por isso mesmo, que se suas posses são razão de pecado, que é melhor abster-se dela. Não é o próprio apóstolo São Mateus que nos diz: "Se um dos teus olhos te faz pecar, arranca-o, e lança-o fora de ti, pois melhor é entrares na vida com um olho só, do que, tendo os dois, seres lançado no fogo eterno" (Mt 18:9)? Ou esquecer-nos do jovem rico? "É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus "(Lc 18, 24-25).

Esse é o poder transformador social do cristianismo, é a única religião que entende que embora o pecado seja individual, que um homem não peca sozinho. Afinal, foi Eva quem levou Adão a pecar. Logo, o cristão deve reformar a sociedade segundo os princípios do evangelho, pois mais facilmente almas se salvarão se assim o fizer.

A economia:

Assim, quando se argumenta apenas por critérios teológicos e morais, o cristão apenas invalida algo, mas nada propõe para por no lugar. Isso tem dois resultados:
1- No caso do liberal-conservador, que tem mais afeto a uma ideia de tradição do que à verdade moral transcendente, e que vê a religião como adorno de uma cultura e de um dasein duginiano; a consequência é que ele apelará ao pragmatismo, a praticidade e ao curto-prazismo para continuar a pregar seu erro.
2- No caso do católico liberal, que enfrenta um drama emocional e existencial de casar modernidade e tradição, estará dando a ele a oportunidade de, igual ao liberal-conservador, de sustentar o liberalismo como a solução prática "mais próximo do ideal" católico manifesto na DSI. É óbvio que isto se trata de um viés cognitivo, pois nas abordagens trabalhistas clássicas também existem respingos da verdade, tantos quanto os liberais. É bem verdade que o comunismo é um pecado maior que o liberalismo. Contudo, o socialismo mitigado é condenável na mesma proporção do liberalismo, tanto que ao passo em que nada a Igreja reconheça de justo no comunismo, a Igreja ao menos reconheceu alguns respingos de verdade no trabalhismo:
Por este caminho podem os princípios deste socialismo mitigado vir pouco a pouco a coincidir com os votos e reclamações dos que procuram reformar a sociedade segundo os princípios cristãos. Estes com razão pretendem que certos géneros de bens sejam reservados ao Estado, quando o poderio que trazem consigo é tal, que, sem perigo do mesmo Estado, não pode deixar-se em mãos dos particulares. Tão justos desejos e revindicações em nada se opõem à verdade cristã, e muito menos são exclusivos do socialismo. Por isso quem só por eles luta, não tem razão para declarar-se socialista. (Pio XI - Quadragésimo Anno)
Em outras palavras, o católico liberal em nada é melhor que o teólogo da libertação.
Por fim, é importante argumentar economicamente, pois assim dar-se-á respostas práticas para problemas práticos. E também, se ocupa para a verdade cristã mais um espaço - da praticidade e da realpolitik - impedindo assim que o erro se instale no seio dos movimentos em consonância com a tradição cristã, sejam eles mais focados na nacionalidade ou na tradição, sob o pretexto do realismo político.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Aspectos do Distributismo no Brasil


Introdução

Sob influência da Doutrina Social da Igreja em geral e da Encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, em particular, desenvolveu-se na Europa, sobretudo na Inglaterra, entre fins do século XIX e o alvorecer do século XX, o Distributismo, doutrina socioeconômica baseada na ideia de que uma ordem social justa e sadia só pode existir onde houver ampla difusão do direito de propriedade, direito fundamental que não deve ser concentrado nas mãos de poucos, mas sim difundido ao maior número possível de pessoas e famílias.

As mais importantes obras distributistas são: O que há de errado com o mundo (What is Wrong with the World) (1910)[1] e O esboço da sanidade (The Outline of Sanity) (1927),[2] de Gilbert Keith Chesterton, e O Estado servil (The Servile State) (1912),[3] Um ensaio sobre a restauração da propriedade (An Essay on the Restoration of Property) (1936)[4], e A crise da nossa Civilização (The Crisis of Our Civilization) (1937),[5] de Hilaire Belloc.

Partindo do pressuposto de que a propriedade e a família são o eixo da Sociedade e de que sobre ambas repousa a estabilidade de todo o edifício social, o Distributismo ou Distributivismo fez e faz da defesa da família e da propriedade, especialmente da pequena propriedade familiar, a espinha dorsal de sua doutrina essencialmente cristã, que entende que o direito de propriedade é condição básica para o desenvolvimento integral do homem, assim como para o exercício de suas justas liberdades e para a autonomia da família.

Baseado, como dissemos, na Doutrina Social da Igreja, o Distributismo se opõe, como esta, a um só tempo ao liberalismo e ao socialismo, ao individualismo e ao coletivismo e, entendendo que o capitalismo não se constitui no sistema econômico da propriedade privada, mas sim no sistema que, no dizer de Hilaire Belloc, “emprega esse direito em benefício de uns poucos privilegiados contra um número muito maior de homens que, ainda que livres e cidadãos em [suposta] igualdade de condições, carecem de toda base econômica própria”,[6] ou seja, o sistema econômico em que os meios de produção são controlados por uma minoria e a esmagadora maioria dos cidadãos se encontra excluída e despossuída.[7]

No mesmo sentido, tendo definido o capitalismo como a condição econômica em que há uma pequena e dificilmente reconhecível classe de capitalistas, em cuja posse grande parte do capital está concentrado de maneira a forçar a ampla maioria dos cidadãos a servi-la em troca de um salário, G. K. Chesterton observou que algumas pessoas usam o termo capitalismo para designar, simplesmente, a propriedade privada, enquanto outras entendem que o capitalismo significa qualquer coisa que envolva o uso do capital. Se capitalismo significar propriedade, “então sou um capitalista”, escreveu o autor d’ O esboço da sanidade. Já se o capitalismo significar capital, “somos todos capitalistas”, na frase do escritor e pensador inglês, uma vez que todos os regimes econômicos envolvem o uso de capital.[8]

Entendendo, porém, que o capitalismo deve significar a há pouco aludida condição particular do capital, somente repassado à maior parte da população sob a forma de salários, Chesterton sustentou que, em última análise, aquilo a que denominamos capitalismo deveria ser chamado de proletarismo.[9]

Ainda no mesmo diapasão, Chesterton ressaltou, em O que há de errado com o mundo, que, “em nossa época, a palavra ‘propriedade’ foi pervertida pela corrupção dos grandes capitalistas”. Segundo este Dom Quixote gordo da velha e brumosa Álbion, os grandes capitalistas, a exemplo dos Rothschilds e Rockefellers, não são defensores da propriedade, mas, antes, inimigos da propriedade, posto que são inimigos dos limites das propriedades. Como sublinhou Chesterton, “o Duque de Sutherland possuir todas as chácaras numa única propriedade rural é a negação da propriedade”.[10]

O Distributismo se relaciona profundamente com a ideia de Justiça e, sobretudo, com duas das formas de Justiça componentes da classificação elaborada por Aristóteles, no Livro V da Ética Nicomaqueia, e desenvolvida por Santo Tomás de Aquino. São estas formas de Justiça a Justiça Legal ou Geral, hoje também conhecida como Justiça Social, e a Justiça Distributiva. A Justiça Legal, Geral ou Social é aquela que vai do indivíduo para a Sociedade, da parte para o todo, baseando-se na obrigação que todos têm de concorrer para o Bem Comum, se referindo, em suma, aos deveres dos indivíduos para com o todo, isto é, para com a Sociedade e o Estado. Já a Justiça Distributiva é aquela que parte da Sociedade para os indivíduos e diz respeito à distribuição dos benefícios e dos encargos, levando sempre em conta os méritos, as aptidões e as funções de cada um ou, em outras palavras, as diferenças naturais entre as pessoas.

Havendo mencionado o nome de Santo Tomás de Aquino e feito referência ao desenvolvimento da classificação aristotélica das formas de Justiça que o magno teólogo e filósofo medieval levou a cabo, cumpre salientar que, como frisou Miguel Reale, a doutrina tomista da Justiça se inspira, antes de tudo, em Aristóteles e haure lições nos escritos de Santo Agostinho, “mas nela emerge algo de novo e profundo”,[11] assim como é mister sublinhar que, como reconheceu Léon Duguit, “a análise do sentimento de justiça foi feita por Santo Tomás de Aquino em termos nunca depois ultrapassados”.[12]

Tendo aludido, do mesmo modo, ao fato de que a Justiça Geral, Legal ou Social diz respeito, em síntese, aos deveres do indivíduo para com a Sociedade e o Estado, convém frisar que, ao contrário do que julgam alguns, não existe Distributismo sem Estado,[13] cumprindo lembrar que Belloc opôs ao Estado servil o Estado Distributivo ou Distributista[14] e que Chesterton propôs, n’O esboço da sanidade, diversas medidas estatais para promover o Distributismo.[15]

Muitos são aqueles que criticam o Distributismo por este se proclamar revolucionário, mas vale ressaltar que a Revolução preconizada pelo Distributismo não se confunde com a derrubada violenta de uma justa ordem estabelecida ou com o processo de desconstrução da Fé, da Ordem Natural e da Ordem Tradicional iniciado com o nominalismo no chamado outono da Idade Média e com o humanismo antropocêntrico do chamado Renascimento, sendo, antes, nas palavras de Belloc, “a reversão para o normal – um repentino e violento retorno às condições que constituem as bases necessárias para a saúde de qualquer comunidade política".[16]

No mesmo sentido do que escreveram Belloc e Chesterton, o pensador, escritor, jornalista e historiador português João Ameal sustentou que "a verdadeira revolução – a única – só poderá ser aquela que (de acordo com o sentido rigoroso do termo), represente a volta ao ponto de partida, restitua o homem ao seu princípio”,[17] e o escritor, pensador, jornalista e líder político brasileiro Plínio Salgado, em discurso proferido na Câmara dos Deputados, em Brasília, aos 29 de abril de 1963, assim ressaltou:
A doutrina que prego é revolucionária. A palavra revolução, conforme indica a sua etimologia, significa retorno. O prefixo re quer dizer volver a alguma coisa. Isto representa o seguinte: quando se dá um desequilíbrio econômico, social ou político numa nação, urge uma revolução para retornar ao equilíbrio perdido.[18]
Destarte, a Revolução, entendida em seu sentido etimológico e astronômico ou cósmico, não se opõe à Tradição, que é a raiz, a seiva, a medula da Nação e não se confunde com o Passado, sendo, em última análise, aquilo que do Passado não passou e que tem condições de se fazer presente e porvir ou, na expressão de Plínio Salgado, o “Passado Vivo”.[19]

Não podendo, por razões de tempo e de espaço, realizar agora um estudo completo, integral do Distributismo no Brasil, trataremos, no presente artigo, de alguns de seus aspectos.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

O “dasein” hipster é liberal-conservador



Uma perspectiva verdadeiramente regressista passa pela crítica da cultura pop moderna. E isso não se pode fazer sem criticar aquela coisa agarrada na nossa garganta e que não desce nem debaixo de muita porrada. O hipster.

A cultura hipster é vista pelos conservadores brasileiros como algo essencialmente progressista. Deve ser, talvez, devido ao fato de que, COM exceção das grandes cidades, ela não pegou aqui com tanta força. Aqui o padrão é o sucesso. E tribos e subgrupos urbanos embora existam são sempre vistos como estrambóticos até pelos próprios integrantes que, em geral, entendem que o padrão é o normal e que no fundo eles têm mesmo é razão.

Mas nos EUA a coisa não é bem assim. Quero dizer, a cultura hipster é essencialmente progressista e compartilhada e vestida por pessoas consideradas progressistas. Mas há algo de distinto nisso. Ela faz enorme sucesso e é quase o novo padrão em grandes cidades. Não raro num metrô você vê vários tipos assim ao lado do que outrora era o padrão, enquanto no Brasil é meia dúzia de malucos.

Isto é particularmente curioso, porque algo progressista não quer dizer apenas respeito a opiniões subjetivas, mas sim a algo de mudança realmente estrutural na sociedade. Isto é, para fora da nossa mente existe um mundo, uma sociedade que tem determinadas características que devem ser mudadas. O hipster em geral não se opõe a essas mudanças, mas é muito raro vê-lo como uma espécie de ponta de lança nesses movimentos transformadores. Ele é um progressista passivo, ou ainda, em palavras mais gentis, um progressista subjetivo. E é nisso que reside seu liberal-conservadorismo. Paradoxal? Veremos mais adiante que não. O que há por detrás desse tipo de mentalidade filosoficamente falando? Vamos primeiro a uma definição de hipster antes de prosseguir.
O hipster ou pelo menos a cultura hipster trata-se da rejeição e quebra de padrões e afirmação de individualidade. Contudo, essa definição tende a ser problemática por uma questão metalinguística. 
A definição padroniza. Ela diz o que é, cria padrões reconhecíveis, essências e, portanto, o hipster teria de necessariamente de rejeitá-las também. Assim, o hipsterismo seria um padrão de comportamento, não uma doutrina ou ideologia, mas um tipo de sensação e de forma de agir, de ser, um novo dasein duginiano urbano. Mas não se engane, o aparente relativismo do hipster é perfeitamente abarcado pela modernidade e pelo conservadorismo, pois o conservador é um moderno moderado, ou como gostam de dizer, prudente. Ora, o conservadorismo rejeita-se enquanto doutrina da mesmíssima forma, e afirma-se como uma conduta existencial e uma forma de ser. Temos uma coincidência aqui que poderemos aprofundar depois, pois seria demasiado ingênuo afirmar só por isso e por uma constatação tão simplória dessas de que “logo, é conservador”.
Mas, diferentemente desses existencialismos capengas que por vezes se encontram em filosofias conservadoras, eu acredito no poder da razão ordenada e na sua capacidade de, em reconhecendo os padrões, identificar as essências e classificá-las (deve ser por isso que eu sou muito mainstream). O curioso é que a própria cultura padrão (ou mainstream) também pode receber esse mesmo tipo de qualidade. Ninguém tem uma doutrina em mente quando deseja se vestir com as roupas que são considerados o básico da sociedade em sua época, ele está apenas externando uma forma de ser de seu tempo e de seu lugar no espaço. É algo meramente automático. Por ser tão claro e cristalino é visível que há nisso um conservadorismo. Mas o aspecto conservador do hipster tem uma certa consciência de si maior, não é uma mera resposta por automatismo, é uma forma de afirmação de se estar numa sociedade liberal-democrática e de afirmar os princípios da mesma.
Dom Marcel Lefevbre demonstra que o ponto de partida do liberalismo é uma dissonância epistemológica, o subjetivismo, que não se conformando com o mundo a sua volta tende a querer editá-lo. Um dos frutos do subjetivismo é o individualismo, através do qual o indivíduo muda a realidade ao invés de ser mudado por ele.
O hipster claramente é subjetivista, e ele afirma sua individualidade, como todo liberal. Ele faz isso de modo existencial e autocrítico. E isso é um outro aspecto de seu conservadorismo. O hipster entende que ele é subjetivamente único e incapaz de se amoldar e de se encaixar no padrão, ele prefere então se editar, se criticar, ao invés de criticar a sociedade como um todo. Por isso o hipster é alguém desconstruindo a si ao invés de desconstruindo o mundo. O hipster é de esquerda, mas isso é uma opinião dele que ninguém é obrigado a seguir. O hipster quer maior distribuição de renda, mas ele não quer forçar ninguém a pensar como ele. O hipster é um cliente assíduo das grandes marcas de roupa, de óculos, de chapéus, de perfumes e de restaurantes chiques ou cafeterias massificadas, símbolos da grande sociedade de consumo.
E isso é profundamente liberal, tal como a sociedade que o rodeia! O que o hipster tem é uma certa autoconsciência que ao ver o mundo padronizado do capitalismo liberal, das sociedades urbanas de massa, decide questionar a si próprio enquanto indivíduo do que questionar a lógica dessa sociedade em si. Assim, ser de esquerda subjetivamente, votar no Bernie Sanders, preocupar-se com os bichinhos da África são apenas formas de reforçar sua individualidade, dado que o homem comum, o “padrão”, está preocupado mais com trabalho, horário, família, cachorro e coisas mais prosaicas como por o lixo para fora. O comportamento hipster é uma fuga liberal para um esquerdismo meramente postiço como forma de demonstrar para si mesmo e para outros que ele é “diferentão”.
Um dos símbolos mais fortes do conservadorismo liberal do hipster é que ele sempre procura – como bom filho da cultura vintage – o anacronismo como forma de mudar seus hábitos e vestimentas. Procura-se o uso de palavras mais antigas, mistura-se elementos contemporâneos como tatuagens com penteados, roupas e óculos da década de 20, 30 ou até 40. Tudo isso de forma contrastante como um sinal de continuidade entre passado e futuro, como  alguém sempre no presente ou alguém atemporal. François Hartog, um filósofo pós-moderno da história chama a atenção para isso, como notam os também historiadores Júlio Bentivoglio e Patrícia Merlo (2014, p.23):
“Essa apropriação do passado pelo presente constitui aquilo que Hartog denominou presentismo. O revival, o vintage, o uso de estilos estéticos, linguagens e objetos do passado no presente são marcas desse presentismo e de crise desse regime moderno de história e historicidade”.
Mas de que crise falam os professores da UFES ao se referir a François Hartog? Apelando ao crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht (apud Merlo e Bentivoglio, 2014, p.24), ambos relacionam essa crise com o medo do futuro, pois conforme o próprio Hartog concordaria “o futuro reserva mais ameaças que exatamente promessas de felicidade e progresso”.
Extraordinário. O hipster é um descrente na ideologia do progresso!
O hipsterismo é simplesmente a conduta do homem moderno que, perdendo o sentido do progresso, temendo e desconfiando do futuro, afirma sua individualidade numa cultura e sociedade burguesa, de modo completamente condizente com ela, sem em nada realmente questioná-la. Em outras palavras, o ser hipster é o mesmo que ser um conservador da sociedade liberal com mais ênfase no liberal, mas sem, entretanto perder o seu aspecto conservador. Ele é diferente da mentalidade tradicional que enxerga o futuro como uma continuidade do passado e que é justificado por ele. Mentalidade esta que alguns conservadores um pouco mais inconformados com a modernidade tendem a tomar, mas ao contrário, o hipster ele exclui a historicidade de tudo, misturando o passado e o presente numa resposta prática e emocional ao medo do futuro e ao niilismo mais tacanho.
Lenin, este sim um verdadeiro progressista e revolucionário criticou essa conduta em partes como sendo a “doença infantil do comunismo”, pois na verdade guarda em seu ínterim um conservadorismo mal disfarçado entre os modos de ser da burguesia. Daí seu apreço a uma eterna belle époque, a uma revitalização do grupo Bloomsbury de onde vieram John Maynard Keynes, Virgínia Woolf, Bertrand Russel, George Bernard Shaw entre outros. O hipster é, nas palavras de Gilson Schwartz um “conservador autocrítico”, ou nas palavras de Keynes (apud Schwartz, 1986, p.44) membro da “burguesia instruída”. O hipster é individualista, niilista de um sentido para a história, afirma a tolerância como virtude, busca o anacronismo e um adepto da sociedade de consumo, das grandes redes de entretenimento, cliente fiel das praças de alimentação dos shoppings e, por fim, sempre virtualizado no facebook, no tumblr e no instagram. Ou você achou mesmo que a nova direita nasceu na internet e cool por acaso, achou?
No fim das contas, pelo subjetivismo mesmo do hipster, o que há de progressista no hipster é postiço, falso, e perfeitamente remodelável para uma conduta verdadeiramente conservadora caso o padrão seja mais progressista do que ele. Vide o caso dos novos conservadores brasileiros, que se vestem como austríacos da década de 20 e 30, com gravatas borboletas, fraques, usam chapéu bowler arredondado, fumam cachimbo e alguns até curtem um pince nez. Durante os anos do petismo, o padrão (mainstream) tornou-se tão progressista que o hipster amedrontado do futuro encontrou seu refúgio no conservadorismo que é, na verdade, a sua essência.
Por fim, retomando o raciocínio inicial, não é possível a criação de uma cultura verdadeiramente tradicional e regressista sem a demolição do aparente progressismo do hipster, que na verdade é apenas circunstancial e usada pelos conservadores para justificar-se como menos progressistas. O que está em xeque aqui é a modernidade que deve ser demolida.
REFERÊNCIAS
LEFEVBRE, Dom Marcel. Do liberalismo a apostasia – A tragédia conciliar. Niterói: Permanência, 2013.
SCHWARTZ, Gilson. John Maynard Keynes: um conservador autocrítico. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BENTIVOGLIO, Júlio; MERLO, Patrícia. Teoria e Metodologia da História: Fundamentos do conhecimento histórico e da historiografia. Vitória: Edufes, 2014.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O papel da Igreja e do Estado na educação contemporânea.


Há uma discussão velha, mas que ainda é relevante, sobretudo no que se refere a tempos como o presente em que se discute o papel do Estado e da Igreja na educação. E fica muitas vezes, o católico contudo, se se deve apoiar a educação estatal pelo seu custo diluído nos impostos que permite que todas as crianças (especialmente as mais pobres) tenham acesso ao ensino, ou se se deve apoiar modelos privados que levantam dúvidas as vezes se podem atender de modo eficiente as famílias mais pobres.

Uma posição muito bem solidificada é a do digníssimo Arcebispo Dom Marcel Lefevbre (2013, p.88) que diz:
"Que lugar deixa a doutrina da Igreja ao Estado, no ensino e na educação? A resposta é simples: à exceção de certas escolas preparatórias aos serviços públicos, como por exemplo, as escolas militares, o Estado não é educador nem docente. Sua função segundo o princípio de subsidiariedade aplicado por Pio XI na citação acima, é promover a fundação de escolas particulares pelos pais e pela Igreja, e não substituí-los. A escola pública [...] mesmo senão for laica e que o Estado não reivindica o monopólio da educação, é um princípio contrário a doutrina da Igreja".
Veja-se então, que para Dom Marcel o Estado não poderia sequer ter uma única escola, mesmo que confessional, para educar uma única criança. A solução claramente privatista, entretanto, parece demasiado exagerada. Vejamos que Dom Estevão Bettencourt é um pouco mais flexível, e mais adiante, entenderemos o por que.
"são dignas de todo encômio as iniciativas do Estado moderno que têm em mira garantir a cada cidadão os meios de vida necessários em casos de doença, acidente, desemprego ou velhice. Contudo daí não se segue, possa ou deva ser extinto o direito ao pecúlio, pois, sem este, o homem fica sendo em tudo dependente da sociedade e do Estado; verá limitadas ou mesmo tolhidas as suas livres iniciativas."
Em que pese Dom Estevão estar falando de ouro campo do estado de bem-estar social, o mesmo princípio pode ser aplicado no caso da educação. As iniciativas de educar as crianças do Estado não são em si mesmas ruins, contudo ele não pode monopolizá-las, e deveriam primariamente se voltar a favorecer condições para que a sociedade mesma se organize em fornecer educação do que ele mesmo oferecê-la, mas que em situações ou locais onde carência de bens materiais impossibilite ou que outra circunstância material qualquer dificulte que um meio não estatal faça esse tipo de ação, que o Estado o faça.

Isto fica precisamente evidente quando lemos a encíclica Mater et magistra do Papa João XXIII, quando ele fala da socialização de serviços (quando estes são oferecidos pelo Estado).

"Sendo assim, deverá concluir-se que a socialização, crescendo em amplitude e profundidade, chegará a reduzir necessariamente os homens a autômatos? A esta pergunta temos de responder negativamente. Não se deve considerar a socialização como resultado de forças naturais impelidas pelo determinismo; ao contrário, como já observamos, é obra dos homens, seres conscientes e livres, levados por natureza a agir como responsáveis, ainda que em suas ações sejam obrigados a reconhecer e respeitar as leis do progresso econômico e social, e não possam subtrair-se de todo à pressão do ambiente. Por isso, concluímos que a socialização pode e deve realizar-se de maneira que se obtenham as vantagens que ela traz consigo e se evitem ou reprimam as conseqüências negativas."

Desta forma percebe-se que o Estado pode e deve atuar na educação (bem como em outros setores do assim chamado estado de bem-estar social) de modo em que se preencham os seguintes requisitos.

  1. Ele não pode nem monopolizar e nem ser demograficamente mais representativo do que as escolas comunitárias e/ou particulares. Sua função é atender àqueles grupos sociais que, de outra forma, não seriam atendidas.
  2. Ela não pode ser uma educação secularizada, laica, ela deve ser confessional em posse da verdadeira religião.
Uma proposta justa para o nosso país, dada as dificuldades que temos, seria que as escolas públicas além de confessionais, tivessem sua gestão privatizada. Isto é, embora permaneçam sendo custeadas e financiadas mormente pelo Estado, sua administração passaria a mão de particulares, tendo além do financiamento público, liberdade para conseguir outros meios de se autofinanciar. 

E claro, mais que simplesmente serem particularmente administradas (por empresas, famílias e até a própria Igreja) ao lado das que já existem privadas, o currículo nacional deveria ser confessional e ser elaborado conforme a doutrina da Igreja. 

É óbvio que se essa formulação não seja talvez a mais fiel de todas, certamente ainda é o bem possível de se obter. A participação estatal na POSSE das mesmas poderia ser subtraída gradativamente na medida em que elas mostrassem capacidade de continuar atendendo eficientemente a sua população local de modo sustentável com mais recursos próprios e cada vez menos recursos públicos. Assim, caberia ao Estado apenas participar - já num estágio mais avançado - naquelas que não conseguissem se autofinanciar ou que mesmo que se financiem, não consigam atender eficientemente a sua demanda local. Mas esta etapa já seria mais de longo prazo.

O processo de municipalização da educação é benéfico e um aspecto muito positivo seria que as escolas públicas cuja administração do Estado fosse direta, também fosse feita pelo ente federado mais próximo do cidadão que é o município. Assim, só aqueles órgãos educacionais cuja importância seja geopolítica ou de Estado (como escolas militares ou mesmo universidades que têm um papel tecnológico e científico vital para o Estado na geopolítica e na economia global) continuariam privativos do Estado.

O fato é que o desempenho direto do Estado de alguns serviços, mesmo que modo desnecessário ás vezes, não constitui em si mesmo socialismo e mesmo o tão criticado aqui Ludwig von Mises reconhece isso, entretanto o ideal é que o Estado execute somente ações que sejam muito necessárias e que de outra forma não seriam executadas pela própria sociedade.

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LEFEVBRE, Dom Marcel. Do liberalismo à apostasia - A tragédia conciliar. Niterói: Editora Permanência, 2013.

Dom Estevão: http://www.pr.gonet.biz/kb_read.php?num=2966

Encíclica: http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater.html