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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Aspectos do Distributismo no Brasil


Introdução

Sob influência da Doutrina Social da Igreja em geral e da Encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, em particular, desenvolveu-se na Europa, sobretudo na Inglaterra, entre fins do século XIX e o alvorecer do século XX, o Distributismo, doutrina socioeconômica baseada na ideia de que uma ordem social justa e sadia só pode existir onde houver ampla difusão do direito de propriedade, direito fundamental que não deve ser concentrado nas mãos de poucos, mas sim difundido ao maior número possível de pessoas e famílias.

As mais importantes obras distributistas são: O que há de errado com o mundo (What is Wrong with the World) (1910)[1] e O esboço da sanidade (The Outline of Sanity) (1927),[2] de Gilbert Keith Chesterton, e O Estado servil (The Servile State) (1912),[3] Um ensaio sobre a restauração da propriedade (An Essay on the Restoration of Property) (1936)[4], e A crise da nossa Civilização (The Crisis of Our Civilization) (1937),[5] de Hilaire Belloc.

Partindo do pressuposto de que a propriedade e a família são o eixo da Sociedade e de que sobre ambas repousa a estabilidade de todo o edifício social, o Distributismo ou Distributivismo fez e faz da defesa da família e da propriedade, especialmente da pequena propriedade familiar, a espinha dorsal de sua doutrina essencialmente cristã, que entende que o direito de propriedade é condição básica para o desenvolvimento integral do homem, assim como para o exercício de suas justas liberdades e para a autonomia da família.

Baseado, como dissemos, na Doutrina Social da Igreja, o Distributismo se opõe, como esta, a um só tempo ao liberalismo e ao socialismo, ao individualismo e ao coletivismo e, entendendo que o capitalismo não se constitui no sistema econômico da propriedade privada, mas sim no sistema que, no dizer de Hilaire Belloc, “emprega esse direito em benefício de uns poucos privilegiados contra um número muito maior de homens que, ainda que livres e cidadãos em [suposta] igualdade de condições, carecem de toda base econômica própria”,[6] ou seja, o sistema econômico em que os meios de produção são controlados por uma minoria e a esmagadora maioria dos cidadãos se encontra excluída e despossuída.[7]

No mesmo sentido, tendo definido o capitalismo como a condição econômica em que há uma pequena e dificilmente reconhecível classe de capitalistas, em cuja posse grande parte do capital está concentrado de maneira a forçar a ampla maioria dos cidadãos a servi-la em troca de um salário, G. K. Chesterton observou que algumas pessoas usam o termo capitalismo para designar, simplesmente, a propriedade privada, enquanto outras entendem que o capitalismo significa qualquer coisa que envolva o uso do capital. Se capitalismo significar propriedade, “então sou um capitalista”, escreveu o autor d’ O esboço da sanidade. Já se o capitalismo significar capital, “somos todos capitalistas”, na frase do escritor e pensador inglês, uma vez que todos os regimes econômicos envolvem o uso de capital.[8]

Entendendo, porém, que o capitalismo deve significar a há pouco aludida condição particular do capital, somente repassado à maior parte da população sob a forma de salários, Chesterton sustentou que, em última análise, aquilo a que denominamos capitalismo deveria ser chamado de proletarismo.[9]

Ainda no mesmo diapasão, Chesterton ressaltou, em O que há de errado com o mundo, que, “em nossa época, a palavra ‘propriedade’ foi pervertida pela corrupção dos grandes capitalistas”. Segundo este Dom Quixote gordo da velha e brumosa Álbion, os grandes capitalistas, a exemplo dos Rothschilds e Rockefellers, não são defensores da propriedade, mas, antes, inimigos da propriedade, posto que são inimigos dos limites das propriedades. Como sublinhou Chesterton, “o Duque de Sutherland possuir todas as chácaras numa única propriedade rural é a negação da propriedade”.[10]

O Distributismo se relaciona profundamente com a ideia de Justiça e, sobretudo, com duas das formas de Justiça componentes da classificação elaborada por Aristóteles, no Livro V da Ética Nicomaqueia, e desenvolvida por Santo Tomás de Aquino. São estas formas de Justiça a Justiça Legal ou Geral, hoje também conhecida como Justiça Social, e a Justiça Distributiva. A Justiça Legal, Geral ou Social é aquela que vai do indivíduo para a Sociedade, da parte para o todo, baseando-se na obrigação que todos têm de concorrer para o Bem Comum, se referindo, em suma, aos deveres dos indivíduos para com o todo, isto é, para com a Sociedade e o Estado. Já a Justiça Distributiva é aquela que parte da Sociedade para os indivíduos e diz respeito à distribuição dos benefícios e dos encargos, levando sempre em conta os méritos, as aptidões e as funções de cada um ou, em outras palavras, as diferenças naturais entre as pessoas.

Havendo mencionado o nome de Santo Tomás de Aquino e feito referência ao desenvolvimento da classificação aristotélica das formas de Justiça que o magno teólogo e filósofo medieval levou a cabo, cumpre salientar que, como frisou Miguel Reale, a doutrina tomista da Justiça se inspira, antes de tudo, em Aristóteles e haure lições nos escritos de Santo Agostinho, “mas nela emerge algo de novo e profundo”,[11] assim como é mister sublinhar que, como reconheceu Léon Duguit, “a análise do sentimento de justiça foi feita por Santo Tomás de Aquino em termos nunca depois ultrapassados”.[12]

Tendo aludido, do mesmo modo, ao fato de que a Justiça Geral, Legal ou Social diz respeito, em síntese, aos deveres do indivíduo para com a Sociedade e o Estado, convém frisar que, ao contrário do que julgam alguns, não existe Distributismo sem Estado,[13] cumprindo lembrar que Belloc opôs ao Estado servil o Estado Distributivo ou Distributista[14] e que Chesterton propôs, n’O esboço da sanidade, diversas medidas estatais para promover o Distributismo.[15]

Muitos são aqueles que criticam o Distributismo por este se proclamar revolucionário, mas vale ressaltar que a Revolução preconizada pelo Distributismo não se confunde com a derrubada violenta de uma justa ordem estabelecida ou com o processo de desconstrução da Fé, da Ordem Natural e da Ordem Tradicional iniciado com o nominalismo no chamado outono da Idade Média e com o humanismo antropocêntrico do chamado Renascimento, sendo, antes, nas palavras de Belloc, “a reversão para o normal – um repentino e violento retorno às condições que constituem as bases necessárias para a saúde de qualquer comunidade política".[16]

No mesmo sentido do que escreveram Belloc e Chesterton, o pensador, escritor, jornalista e historiador português João Ameal sustentou que "a verdadeira revolução – a única – só poderá ser aquela que (de acordo com o sentido rigoroso do termo), represente a volta ao ponto de partida, restitua o homem ao seu princípio”,[17] e o escritor, pensador, jornalista e líder político brasileiro Plínio Salgado, em discurso proferido na Câmara dos Deputados, em Brasília, aos 29 de abril de 1963, assim ressaltou:
A doutrina que prego é revolucionária. A palavra revolução, conforme indica a sua etimologia, significa retorno. O prefixo re quer dizer volver a alguma coisa. Isto representa o seguinte: quando se dá um desequilíbrio econômico, social ou político numa nação, urge uma revolução para retornar ao equilíbrio perdido.[18]
Destarte, a Revolução, entendida em seu sentido etimológico e astronômico ou cósmico, não se opõe à Tradição, que é a raiz, a seiva, a medula da Nação e não se confunde com o Passado, sendo, em última análise, aquilo que do Passado não passou e que tem condições de se fazer presente e porvir ou, na expressão de Plínio Salgado, o “Passado Vivo”.[19]

Não podendo, por razões de tempo e de espaço, realizar agora um estudo completo, integral do Distributismo no Brasil, trataremos, no presente artigo, de alguns de seus aspectos.