Uma perspectiva verdadeiramente
regressista passa pela crítica da cultura pop moderna. E isso não se pode fazer
sem criticar aquela coisa agarrada na nossa garganta e que não desce nem
debaixo de muita porrada. O hipster.
A cultura hipster é vista pelos
conservadores brasileiros como algo essencialmente progressista. Deve ser,
talvez, devido ao fato de que, COM exceção das grandes cidades, ela não pegou
aqui com tanta força. Aqui o padrão é o sucesso. E tribos e subgrupos urbanos
embora existam são sempre vistos como estrambóticos até pelos próprios
integrantes que, em geral, entendem que o padrão é o normal e que no fundo eles
têm mesmo é razão.
Mas nos EUA a coisa não é bem
assim. Quero dizer, a cultura hipster é essencialmente progressista e
compartilhada e vestida por pessoas consideradas progressistas. Mas há algo de
distinto nisso. Ela faz enorme sucesso e é quase o novo padrão em grandes
cidades. Não raro num metrô você vê vários tipos assim ao lado do que outrora
era o padrão, enquanto no Brasil é meia dúzia de malucos.
Isto é particularmente curioso,
porque algo progressista não quer dizer apenas respeito a opiniões subjetivas,
mas sim a algo de mudança realmente estrutural na sociedade. Isto é, para fora
da nossa mente existe um mundo, uma sociedade que tem determinadas
características que devem ser mudadas. O hipster em geral não se opõe a essas
mudanças, mas é muito raro vê-lo como uma espécie de ponta de lança nesses
movimentos transformadores. Ele é um progressista passivo, ou ainda, em
palavras mais gentis, um progressista subjetivo. E é nisso que reside seu liberal-conservadorismo.
Paradoxal? Veremos mais adiante que não. O que há por detrás desse tipo de
mentalidade filosoficamente falando? Vamos primeiro a uma definição de hipster
antes de prosseguir.
O hipster ou pelo menos a cultura
hipster trata-se da rejeição e quebra de padrões e afirmação de
individualidade. Contudo, essa definição tende a ser problemática por uma
questão metalinguística.
A definição padroniza. Ela diz o que é, cria padrões
reconhecíveis, essências e, portanto, o hipster teria de necessariamente de
rejeitá-las também. Assim, o hipsterismo seria um padrão de comportamento, não
uma doutrina ou ideologia, mas um tipo de sensação e de forma de agir, de ser,
um novo dasein duginiano urbano. Mas não se engane, o aparente relativismo do
hipster é perfeitamente abarcado pela modernidade e pelo conservadorismo, pois
o conservador é um moderno moderado, ou como gostam de dizer, prudente. Ora, o
conservadorismo rejeita-se enquanto doutrina da mesmíssima forma, e afirma-se
como uma conduta existencial e uma forma de ser. Temos uma coincidência aqui
que poderemos aprofundar depois, pois seria demasiado ingênuo afirmar só por
isso e por uma constatação tão simplória dessas de que “logo, é conservador”.
Mas,
diferentemente desses existencialismos capengas que por vezes se encontram em
filosofias conservadoras, eu acredito no poder da razão ordenada e na sua
capacidade de, em reconhecendo os padrões, identificar as essências e
classificá-las (deve ser por isso que eu sou muito mainstream). O curioso é que a própria cultura padrão (ou mainstream) também pode receber esse
mesmo tipo de qualidade. Ninguém tem uma doutrina em mente quando deseja se
vestir com as roupas que são considerados o básico da sociedade em sua época,
ele está apenas externando uma forma de ser de seu tempo e de seu lugar no
espaço. É algo meramente automático. Por ser tão claro e cristalino é visível
que há nisso um conservadorismo. Mas o aspecto conservador do hipster tem uma
certa consciência de si maior, não é uma mera resposta por automatismo, é uma
forma de afirmação de se estar numa sociedade liberal-democrática e de afirmar
os princípios da mesma.
Dom Marcel
Lefevbre demonstra que o ponto de partida do liberalismo é uma dissonância
epistemológica, o subjetivismo, que não se conformando com o mundo a sua volta
tende a querer editá-lo. Um dos frutos do subjetivismo é o individualismo,
através do qual o indivíduo muda a realidade ao invés de ser mudado por ele.
O hipster
claramente é subjetivista, e ele afirma sua individualidade, como todo liberal.
Ele faz isso de modo existencial e autocrítico. E isso é um outro aspecto de
seu conservadorismo. O hipster entende que ele é subjetivamente único e incapaz
de se amoldar e de se encaixar no padrão, ele prefere então se editar, se
criticar, ao invés de criticar a sociedade como um todo. Por isso o hipster é
alguém desconstruindo a si ao invés de desconstruindo o mundo. O hipster é de esquerda,
mas isso é uma opinião dele que ninguém é obrigado a seguir. O hipster quer
maior distribuição de renda, mas ele não quer forçar ninguém a pensar como ele.
O hipster é um cliente assíduo das grandes marcas de roupa, de óculos, de
chapéus, de perfumes e de restaurantes chiques ou cafeterias massificadas,
símbolos da grande sociedade de consumo.
E isso é
profundamente liberal, tal como a sociedade que o rodeia! O que o hipster tem é
uma certa autoconsciência que ao ver o mundo padronizado do capitalismo
liberal, das sociedades urbanas de massa, decide questionar a si próprio
enquanto indivíduo do que questionar a lógica dessa sociedade em si. Assim, ser
de esquerda subjetivamente, votar no Bernie Sanders, preocupar-se com os
bichinhos da África são apenas formas de reforçar sua individualidade, dado que
o homem comum, o “padrão”, está preocupado mais com trabalho, horário, família,
cachorro e coisas mais prosaicas como por o lixo para fora. O comportamento
hipster é uma fuga liberal para um esquerdismo meramente postiço como forma de
demonstrar para si mesmo e para outros que ele é “diferentão”.
Um dos símbolos
mais fortes do conservadorismo liberal do hipster é que ele sempre procura –
como bom filho da cultura vintage – o
anacronismo como forma de mudar seus hábitos e vestimentas. Procura-se o uso de
palavras mais antigas, mistura-se elementos contemporâneos como tatuagens com
penteados, roupas e óculos da década de 20, 30 ou até 40. Tudo isso de forma
contrastante como um sinal de continuidade entre passado e futuro, como alguém sempre no presente ou alguém
atemporal. François Hartog, um filósofo pós-moderno da história chama a atenção
para isso, como notam os também historiadores Júlio Bentivoglio e Patrícia
Merlo (2014, p.23):
“Essa apropriação do passado pelo presente constitui aquilo que Hartog denominou presentismo. O revival, o vintage, o uso de estilos estéticos, linguagens e objetos do passado no presente são marcas desse presentismo e de crise desse regime moderno de história e historicidade”.
Mas de que
crise falam os professores da UFES ao se referir a François Hartog? Apelando ao
crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht (apud
Merlo e Bentivoglio, 2014, p.24), ambos relacionam essa crise com o medo do
futuro, pois conforme o próprio Hartog concordaria “o futuro reserva mais ameaças que exatamente promessas de felicidade e
progresso”.
Extraordinário.
O hipster é um descrente na ideologia do progresso!
O hipsterismo é
simplesmente a conduta do homem moderno que, perdendo o sentido do progresso,
temendo e desconfiando do futuro, afirma sua individualidade numa cultura e
sociedade burguesa, de modo completamente condizente com ela, sem em nada
realmente questioná-la. Em outras palavras, o ser hipster é o mesmo que ser um
conservador da sociedade liberal com mais ênfase no liberal, mas sem,
entretanto perder o seu aspecto conservador. Ele é diferente da mentalidade
tradicional que enxerga o futuro como uma continuidade do passado e que é
justificado por ele. Mentalidade esta que alguns conservadores um pouco mais
inconformados com a modernidade tendem a tomar, mas ao contrário, o hipster ele
exclui a historicidade de tudo, misturando o passado e o presente numa resposta
prática e emocional ao medo do futuro e ao niilismo mais tacanho.
Lenin, este sim
um verdadeiro progressista e revolucionário criticou essa conduta em partes
como sendo a “doença infantil do comunismo”, pois na verdade guarda em seu
ínterim um conservadorismo mal disfarçado entre os modos de ser da burguesia.
Daí seu apreço a uma eterna belle époque, a uma revitalização do grupo
Bloomsbury de onde vieram John Maynard Keynes, Virgínia Woolf, Bertrand Russel,
George Bernard Shaw entre outros. O hipster é, nas palavras de Gilson Schwartz
um “conservador autocrítico”, ou nas palavras de Keynes (apud Schwartz, 1986,
p.44) membro da “burguesia instruída”. O hipster é individualista, niilista de
um sentido para a história, afirma a tolerância como virtude, busca o
anacronismo e um adepto da sociedade de consumo, das grandes redes de entretenimento,
cliente fiel das praças de alimentação dos shoppings
e, por fim, sempre virtualizado no facebook, no tumblr e no instagram. Ou você
achou mesmo que a nova direita nasceu na internet e cool por acaso, achou?
No
fim das contas, pelo subjetivismo mesmo do hipster, o que há de progressista no
hipster é postiço, falso, e perfeitamente remodelável para uma conduta
verdadeiramente conservadora caso o padrão seja mais progressista do que ele.
Vide o caso dos novos conservadores brasileiros, que se vestem como austríacos
da década de 20 e 30, com gravatas borboletas, fraques, usam chapéu bowler
arredondado, fumam cachimbo e alguns até curtem um pince nez. Durante os anos do petismo, o padrão (mainstream) tornou-se tão progressista
que o hipster amedrontado do futuro encontrou seu refúgio no conservadorismo
que é, na verdade, a sua essência.
Por
fim, retomando o raciocínio inicial, não é possível a criação de uma cultura
verdadeiramente tradicional e regressista sem a demolição do aparente
progressismo do hipster, que na verdade é apenas circunstancial e usada pelos
conservadores para justificar-se como menos progressistas. O que está em xeque
aqui é a modernidade que deve ser demolida.
REFERÊNCIAS
LEFEVBRE, Dom
Marcel. Do liberalismo a apostasia – A tragédia conciliar. Niterói: Permanência,
2013.
SCHWARTZ,
Gilson. John Maynard Keynes: um conservador autocrítico. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
BENTIVOGLIO,
Júlio; MERLO, Patrícia. Teoria e Metodologia da História: Fundamentos do
conhecimento histórico e da historiografia. Vitória: Edufes, 2014.