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sábado, 13 de junho de 2015

A falsa tradição liberal.


Embora as instituições políticas do liberalismo representem um ganho, por outro lado, sua base filosófica é o cancro que vem destruindo a moral, as tradições e os laços sociais. O individualismo é o grande mal do século. Que é pois o liberalismo se não seu ideal de progresso e seu individualismo? O problema com o liberalismo passa longe de instituições políticas que remetem a antiguidade clássica e também a Idade Média. A base da doutrina liberal é a crença num indivíduo abstrato pelo qual tudo se mede. 

Ora, o indivíduo é uma visão essencialista, um universal-abstrato de direitos. E ele foi feito com esse intento para valer para todos os seres humanos independente de quem eles sejam. Não importa se são judeus, cristãos, muçulmanos ou se são brancos ou negros. Assim sendo, a figura do indivíduo é um construto mental que não possui pai, mãe, irmãos, não fala nenhum idioma, não tem religião, não tem valores nem etnia. O indivíduo é uma essência descolada do real que é tomado como parâmetro de decisão em toda e qualquer querela do Estado liberal. Aqui reside ao meu ver o maior mal do liberalismo, o fato de julgar seres humanos concretos com base numa abstração. O liberalismo julga particulares-concretos com base em um universal-abstrato, portanto, o homem ou mulher que possuir valores mais sólidos e, portanto, menos maleáveis, será sempre execrado e exterminado pelo Estado liberal. 

O resultado social disso é a relativização dos laços familiares, das relação comunitárias e sociais e a destruição das religiões. Ora, isto é a negação de toda e qualquer tradição. A tradição e os valores são objetos que transitam entre as eras e só fazem sentido nas relações humanas. Elas sofrem alterações pequenas devido a modificação do ambiente histórico, mas é perfeitamente possível ver o diálogo entre as eras como um caminho que liga os homens de outrora aos homens de hoje. Podemos fazer o caminho hegeliano de maneira simples: A antiguidade apresentou aos homens a noção de justiça, democracia e  direito, assim como a Idade Média apresentou ao mundo a religião cristã. A renascença e as nações mercantilistas buscam novamente a justiça, a democracia e o direito. Porém algo acontece: o liberalismo nascente não busca uma relação tese-antítese-síntese com o passado. Ao contrário, como nos mostra o filósofo Alasdair MacIntyre (1991, p.21), ele nega toda e qualquer tradição anterior e com isso não aceita qualquer ideia prévia a ele como antítese.
"Assim, a visão aristotélica da justiça e da racionalidade prática emerge dos conflitos da pólis antiga, mas é em seguida desenvolvida por Tomás de Aquino de um modo que escapa às limitações da pólis. Assim a versão agostiniana do cristianismo estabeleceu, no período medieval, complexas relações de antagonismo, posteriormente de síntese, e depois de continuado antagonismo com o aristotelismo. Assim num contexto cultural posterior bastante diferente, o cristianismo agostiniano, agora numa forma calvinista, e o aristotelismo agora numa versão da Renascença, entraram numa nova simbiose na Escócia do século XVII, gerando uma tradição que no ápice de sua realização foi subvertida a partir de dentro por Hume. Assim, finalmente, o liberalismo moderno, nascido do antagonismo com toda tradição, transformou-se gradualmente em algo que é agora claramente reconhecível, mesmo por alguns de seus adeptos, como mais uma tradição."
O outro problema do liberalismo que citamos é a sua noção de progresso que o impede de olhar para o passado, evitando com isso, aprender algo de novo com ele. Como o futuro é, pois, pura especulação e abstração, toda a sociedade liberal moderna e pós-moderna não trabalha com a história e a tradição e sim com ideais abstratos totalmente descolados do real. A tradição liberal, não se misturando com qualquer outra recuperando-a e adaptando-a as novas mudanças técnicas, é incapaz de se manter uma tradição ao longo dos séculos, pois acabará por corroer com seu individualismo e o seu progressismo seu próprio alicerce. O liberalismo é no fim das contas uma falsa tradição que se universalizou. O liberalismo da tradição iluminista escocesa de certa forma preservou estes legados do passado. Era uma característica dele não se ressentir do passado e não se recusar a olhar para ele, porém ele foi soterrado pelo iluminismo francês, não tanto pela França em si, mas graças aos Estados Unidos da América.

Pensemos um segundo:

1- A Inglaterra é governada por uma monarquia - Herança medieval.
2- A Inglaterra possui uma câmara superior cujos membros são a aristocracia, a câmara dos Lordes. - Herança medieval.
3- A Inglaterra é um estado confessional, não um estado laico. - Herança (um pouco distorcida devido ao protestantismo) medieval, onde a religião ainda mantém um papel importante em relação ao Estado.
4- A Inglaterra não possui uma constituição formalizada escrita - Ainda muito amparada na Commom Law e na tradição.

Só então, surge a democracia resgatada da antiguidade clássica como aporte.

Por outro lado, pensemos na América:
1- É uma república - ideal do iluminismo francês;
2- Todos os membros são cidadãos comuns eleitos. - ideal do iluminismo francês.
3- É um estado laico - ideal do iluminismo francês.
4- Possui uma constituição formalizada que, segundo Niall Ferguson em "A Grande Degeneração", está sendo corrompido pela Civil Law francesa.

Qualquer influencia do iluminismo escocês no liberalismo moderno não passa de um borrão, de uma sombra de uma ideia suprimida e derrotada. Qualquer dúvida maior a respeito, basta conferir o livro do cientista político Bruno Garschagen "Pare de acreditar no governo!", onde ele mostra como os founding fathers eram maçons do rito vermelho - francês - que é de caráter ateu, republicano e revolucionário, ao passo que os escoceses e britânicos eram conservadores do rito azul, mais conservadores que os Ianques.

Se quisermos tirar uma "prova dos nove" dessa influência, poderíamos ainda recorrer ao livro "Civilização: Ocidente x Oriente" de Niall Ferguson (2012, p.184) onde ele diz:

"Mas quando se tratou de conceber as novas regras fundamentais da vida política francesa, os revolucionários adotaram uma linguagem reconhecidamente norte-americana (grifo meu), À prieira vista, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 27 de agosto de 1789, teria encontrado pouca oposição na Filadélfia".

Uma vez que levamos tudo isso em consideração na análise do liberalismo como tradição autodestrutiva, a grande questão que surge no debate é: É possível salvar o liberalismo de si mesmo? 

Uns acenam que não e portanto abraçam o antiliberalismo (seja de direita ou de esquerda), outros acreditam ainda que é possível forçá-lo a dialogar com o passado, o que permitiria que ele gradativamente se tornasse em algo novo. Outros, lamentavelmente, ainda acreditam que o fim de toda tradição, valor e moral é na verdade um bem para a humanidade. No primeiro caso se encontram os movimentos comunistas de matiz stalinista, os tradicionalistas e os movimentos de terceira posição. No segundo se encontram os democrata cristãos e no terceiro estão os liberais e a maioria dos esquerdistas social-democratas ou trotskystas. No meio desse turbilhão ficam perdidos os conservadores liberais da tradição escocesa, pois embora detestem o fim da moralidade e a corrupção do mundo moderno, recusam-se porém a abandonar o individualismo que serve como corrosivo dos fundamentos da sociedade ocidental, cujo mecanismo que mantém a queima destrutiva é o ideal de progresso. 

Qual seria pois a solução democrática cristã para salvar a tradição liberal e, através de uma nova síntese criar um fato novo? A proposta é simples: acabar com o ideal de progresso e com o individualismo, substituindo-o pelo comunitarismo. Isto entretanto é um assunto que pretendo abordar em outro texto.

Contudo, é forçoso saber, que a democracia cristã a que me refiro, é a modernista e liberal. A verdadeira democracia cristã, aquela de Leão XIII, que segundo H. Mottais (apud GOMES, 1933, p.82), rejeita os princípios do liberalismo. Trabalharemos ainda esse tema, em texto futuro, porém, nos textos seguintes dialogarei sobre a demcoracia cistã como a conhecemos.

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MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Edições Loyola, 1991.

FERGUSON, Niall. A Grande Degeneração - A decadência do mundo ocidental. São Paulo: editora Planeta, 2013.

FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente x Oriente. São Paulo: Editora Planeta, 2012.

GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo! Por que os brasileiros odeiam os políticos e amam o estado?. São Paulo: Editora Record, 2015.

GOMES, Perillo. O Liberalismo. Barcelona: Imprensa Boada, 1933

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