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sábado, 14 de fevereiro de 2015

As economias sociais de mercado e o conceito de terceira via


Uma das grandes confusões que surgem quando se pretende definir uma terceira via econômica, é sem dúvidas, a volatilidade de tal conceito. Entre o liberalismo absoluto (minarquia) e o socialismo real (URSS) existe um vasto degradé de tonalidades entre o “azul” e o vermelho que podem ser igualmente chamados de terceira via.
Inclusive, o social democrata inglês Anthony Giddens foi muito criticado ao utilizar esta nomenclatura para sua proposta, visto que terceira via também pode se relacionar ao fascismo, que ocupa uma gradação mais estatista e autoritária entre os dois pontos de referência nos extremos.
John Stuart Mill também seria uma terceira via dentro deste quadro, assim como John Maynard Keynes. Mas por critérios metodológicos mais fiáveis, necessitamos precisar o conceito para que ele não se torne tão vasto e, muitas vezes, contraditório.
Uma prova de que dentro da ideia de terceira via cabem muitas propostas diferentes vêm do próprio social democrata Giddens (2001, p.39), que em “The Third Way and its critics” pontuou que existem diferenças entre propostas de terceira via nos países da Europa.
“As reformas do welfare state na Dinamarca em 1993-94 diferem significativamente das que foram realizadas na Grã-Bretanha, mas há muitos aspectos em que se sobrepõem. A “economia negociada” dinamarquesa, o muito discutido “mercado popular” nos Países Baixos e muitas outras mudanças em andamento na social-democracia da Europa continental são de relevância direta para a política de terceira via. […] Um recente trabalho da comissão dos valores básicos do Partido Social Democrata Alemão, distingue quatro diferentes terceiras vias na Europa. Uma é a abordagem “orientada para o mercado” assumida pelo novo Trabalhismo. A abordagem holandesa é orientada para “o mercado e o consenso”. A Suécia está trilhando o caminho do “welfare state reformado”. Conservando grande parte da continuidade do seu passado. A continuidade do desenvolvimento é também aparente na França, que está se aferrando à “via liderada pelo Estado”.”
Como podemos perceber, Giddens explora a noção de terceira via de varias formas diferentes dentro do espectro político da esquerda. Cada uma possui sua especificidade sem, entretanto, perder o seu caráter social democrata.
Por outro lado, a terceira via não existe apenas dentro do espectro político da esquerda, ela também existe dentro de um conjunto de pensamentos que se inclinam à direita, sendo para estes fins de centro-direita e mais próximos do liberalismo econômico. É o que nos ensina a figura de determinados pensadores da economia, sendo os mais notórios deles, Walter Eucken, Wilhelm Röpke e Ludwig Erhard.

Terceira via
O primeiro passo para se entender uma proposta de ESM à direita é pensar que, apesar do estado existir e ser importante, há um elemento mais importante do que ele, o mercado. O mercado não é ninguém em específico, não é apenas o grande empresário; o mercado não é apenas George Soros, Bill Gates e mais uns dois ou três meta-capitalistas. O mercado são todas as pessoas na sociedade. Por tanto uma proposta de Terceira Via democrática e liberal deve entender que o mercado é o mais importante agente de justiça social e não o Estado, embora ele possa desempenhar um excelente papel complementar, entretanto, este papel somente ocorreria nas áreas em que as ações do mercado, ou ainda, da própria sociedade não fossem suficientes para promover o seu próprio bem estar.
Em “Bem-estar para todos”, Ludwig Erhard não nega inteiramente o welfare state, embora mostre um receio para com ele. Para o democrata cristão que foi ministro da economia e chanceler da RFA, o mercado é “social” em si mesmo, desde que ele não fosse relegado a sua própria sorte e a dos agentes do mercado[2]. Erhard sabia que apesar do mercado incluir todas as pessoas, no mercado nem todos são iguais, uns tem mais poder do que outros, visto que nele, os meios de troca, se convertem em meios de ação, e, obviamente, quem tem mais meios de ação, tem mais poder. Erhard compreendia que o livre mercado deixado a própria sorte não imporia limites aos players, o que os levaria, diante de situações como as de crise, ou em mercados novos, a formação de oligopólios e cartéis. A principal função do Estado para Erhard não era a de intervir no processo econômico e tomar recursos de alguns poucos e dar para muitos que não os tem, mas sim, observar e cuidar do mercado, para evitar que alguns “espertalhões” queiram se livrar do regime de competição para estabelecer conchavos de preços; esta seria então, a condição sine qua non para que o mercado pudesse gerar desenvolvimento econômico e prosperidade para toda uma nação. A história não poderia ter dado mais razão a alguém do que deu a Erhard, sua ação firme e impecável como ministro da economia, o levou a se tornar o “ministro do milagre”, e posteriormente, a chanceler da Alemanha Ocidental. Entres os muitos dados impressionantes estão os do consumo interno, que em 1951 era de 4,6 bilhões marcos e em 1961 era de 10,7 bilhões de marcos. Em suma, o consumo das famílias, assim como seu poder de compra, mais do que dobrou.[3] Em 1955, a produção industrial da Alemanha, com apenas metade de seu território, já era superior a de 1938 sob a égide do Nazismo e sua máquina tenebrosa de guerra[4]. No começo do primeiro gabinete de Konrad Adenauer, o desemprego chegava a 1 milhão e meio de pessoas, em 1961, a situação era de pleno emprego, com apenas 95 mil de desempregados[5].
Manuel Wörsdörfer (p.23) comenta que as bases do sucesso da economia social de mercado alemã pode ser percebida já em Walter Eucken, pai do pensamento ordoliberal, o que confirma essa auto limitação do Estado em “não dar o peixe, mas permitir que o lago esteja limpo para que os pescadores façam seu trabalho”. Ele chama a atenção a isto no seu artigo “On the Economic Ethics of Walter Eucken”.
O Estado deve se auto-limitar à formação de regulamentos, ou estruturas; a intervenção do Estado nas peças econômicas do jogo deve ser em razão da conformidade com o mercado, ou seja, não deve prejudicar o funcionamento dos mecanismos de mercado e de preços.
Se há algo com que Erhard realmente se importou ao longo de sua estadia no gabinete de Konrad Adenauer, foi com a estabilidade da moeda. Todos os conflitos que este teve com o Partido Social Democrata, ao menos no início de suas funções no bundestag, tiveram como base a defesa da estabilidade do valor do Deutsche Mark, sua criação. Erhard teve de rebater propostas de controle de preços, expansão do crédito, aumento do gasto público e de desvalorização cambial. Podemos definir a partir do que fora exposto, quais são os cinco pilares fundamentais da economia social de mercado na perspectiva ordoliberal.
  1. Estabilidade da Moeda.
  2. Livre formação de preços.
  3. Mecanismos de prevenção e combate aos cartéis e oligopólios.
  4. Subsidiariedade
  5. Austeridade Fiscal.
Em conclusão, podemos dizer que estes cinco fundamentos, formam as bases sobre as quais se construíram o verdadeiro ideal de liberdade e igualdade que jamais foi alcançado pelo socialismo e nem pelo laissez-faire da economia clássicaResico (2012, p.112-113) resume bem o significado disto. Para ele o núcleo da Economia Social de Mercado é:
“a combinação do princípio da liberdade de mercado com o princípio da equidade social” […] Mesmo assim, pode-se afirmar que, nesse contexto, a Economia Social de Mercado foi desenvolvida como uma alternativa liberal diante da economia planejada e como uma alternativa social à economia de mercado no estilo clássico.
Liberdade e Igualdade sempre estarão em conflito como valores antagônicos; o que a Economia Social de Mercado, como uma proposta de terceira via democrática, se propõe a fazer, é encontrar um ponto de equilíbrio entre esses dois valores. Este é um esforço contrário ao que era comumente abraçado pelos economistas durante o período de polarização da Guerra Fria, onde se tendia a levar um desses valores até suas ultimas consequências em detrimento de seu oposto. Podemos citar como exemplos dessa polarização intensa Ludwig von Mises e F.A. von Hayek no “corner” do liberalismo econômico, e ainda, Oskar Lange e Gunnar Myrdal no “corner” do socialismo.
A proposta à direita de ESM é a proposta ordoliberal, que ao invés de querer combinar o liberalismo econômico com o Estado previdência gigante como se faz nas alternativas a esquerda, pretende confiar, uma vez mais, na liberdade dos indivíduos, onde o Estado apenas age para permitir que essa liberdade seja maximizada e estável e que socorra a quem precise apenas quando a sociedade não puder fazer isto por si própria.
Para concluir, retornamos ao conceito de terceira via, quando Alfred Müller-Armack definiu a ideia central de Economia Social de Mercado como uma terceira via econômica, ele não estava necessariamente se opondo as ideias dos clássicos tal qual elas são; até porque hoje, como muito bem demonstrado por Lionel Robbins, os economistas clássicos se sentiriam muito mais confortáveis perto dos ordoliberais alemães do que dos libertários americanos. Müller-Armack não atacava as ideias presentes nos escritos de Smith, Ricardo ou John Stuart Mill, ele atacava o resultado prático e a implantação prática, real do liberalismo, que divergia em muito daquilo que realmente pensava os liberais clássicos.
Uma atualização do conceito de terceira via seria uma posição de centro, moderada, colocada entre o estatismo fascista e socialista e o fundamentalismo de mercado dos libertários e minarquistas.  
Referências:
ERHARD, Ludwig. Bem-estar para todos. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1964.
GIDDENS, Anthony. A terceira via e seus críticos. São Paulo: Editora Record, 2001.
RESICO, Marcelo. Introdução à Economia Social de Mercado. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2012.
RÖPKE, Wilhelm. Os países subdesenvolvidos. São Paulo: Editora Saraiva, 1960
WÖRSDÖFER, Manuel.  On the Economic Ethics of Walter Eucken. Konrad Adenauer Stiftung, 2010.
[1] Graduando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e graduado em Pedagogia pelo Centro Universitário São Camilo – Espírito Santo. Democrata Cristão, ordoliberal, e apaixonado por história da economia.
[2] Wilhelm Röpke assinala o mesmo em “Os países subdesenvolvidos”.
[3] ERHARD, 1964, p.177
[4] Ibid. p.59
[5] Ibid. p.69

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