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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Os problemas da TACE ao explicar a crise de 2008.

Christopher A. Ferrara*

Os austríacos afirmam que a crise de 2008 inaugurada pela falência do Lehmann Brothers teria sido única e exclusivamente culpa do governo. A tese implícita nesta afirmativa seria a de que num mercado verdadeiramente livre, não haveriam crises como a que devastou a economia americana em 2008. Mas no que eles fundamentam essa ideia? Os austríacos fundamentam seu argumento na TACE – Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos. Em que pese ela tenha tido algumas versões ligeiramente distintas na visão de alguns economistas mais destacados desta escola, a versão mais popular e utilizada para explicar a crise de 2008 é a versão apresentada por Friedrich Auguste von Hayek, vencedor do prêmio Nobel de economia de 1974 (Os austríacos geralmente se esquecem, entretanto, que o prêmio foi dividido com o keynesiano Gunnar Myrdal para que não houvessem choques ideológicos).
A teoria austríaca dos ciclos econômicos” – diz Thomas Woods – “exonera da culpa o livre-mercado pelo ciclo de boom-bustque terminou no derretimento da economia americana. Exonera! Not guilty, your honor! De acordo com a TACE, o FED (Ajudado por Freddie Mac e Fanny Mae) causaram a crise quando artificialmente baixaram a taxa de juros no início dos anos 2000, fazendo com que fossem atirados “enorme quantidade de recursos na construção e produção de casas” de acordo com Woods. Isto teria criado uma superprodução e criando a “bolha imobiliária” a qual o estouro subsequente levou ao declínio generalizado dos preços a partir de 2006. A afirmação austríaca é obviamente falsa do ponto de vista lógico e factual.
  • Logicamente é falsa, porque o argumento causal austríaco elimina o livre arbítrio da conta moral dos atores econômicos que participaram da crise, levando-nos a falácia de correlação coincidente. Ex: Se o rifle não fosse dado de presente a Smith, ele não teria se matado[1]. Logo, o rifle é “a causa” da morte de Smith. De modo análogo no raciocínio austríaco, taxas de juros artificialmente baixas geram maus investimentos sem qualquer intervenção da vontade humana, como se a prudência e a aversão a riscos deterministicamente[2] caíssem e subissem na mesma proporção da taxa de juros. Ou ainda, como se investidores fossem incapazes de ver o que os economistas austríacos viram; embora se deva fazer notar, como um piadista certa vez notou, de que os austríacos previram 11 das últimas 4 crises[3].
  • Factualmente, a afirmação é falsa porque a crise de 2008 foi muito mais do que uma simples “bolha imobiliária” criada por uma super-oferta de casas. Ela foi, na verdade, uma grande bolha de crédito que não envolveu maus investimentos na construção de casas, mas ao contrário disso uma pandemia de gastos e empréstimos sem qualquer garantia, na forma de riscos primários, secundários e hipotecas ajustáveis em linhas de crédito para construção de casas financiando casas novas e antigas além de dívidas de cartão de crédito para propósitos outros que não o investimento em capital, tais como férias, quinquilharias e outros luxos.
Aqui os austríacos borram a distinção entre duas taxas de curto prazo fixadas pelo FED para empréstimos bancários – a taxa de fundos federais e a taxa de desconto - com a taxa de juros de longo-prazo que é estável para uma hipoteca fixa com prazo de 20 ou 30 anos. A taxa de juros do Federal Reserve NÃO determinam as taxas de juros sobre hipotecas, que são muito maiores e não têm correlação com as taxas do FED. Ao invés disso, as taxas de juros do FED afetam apenas linhas de crédito para hipotecas ajustáveis e taxas de cartão de crédito. [...] A crise aconteceu em parte porque emprestadores se engajaram numa “orgia” com tomadores de empréstimo mau qualificados, fazendo não apenas uma hipoteca, mas até mesmo duas ou três para tomadores de empréstimos que simplesmente não poderiam pagá-los (subprime borrowers). Não haveria bolha de crédito, e consequencialmente não haveria crise, se os emprestadores tivessem apostado em taxas de juros fixas e oferecido apenas a tomadores de empréstimos “prime”, ou qualificados. [...] Talvez reconhecendo isso, austríacos defendam empréstimos subprime como “livre troca[4]” ao passo em que culpam apenas o FED pela bolha imobiliária, como sendo apenas resultado de baixo custo para financiar projetos residenciais.
Os austríacos também obscurecem a realidade de que a crise foi uma bolha especulativa que nasceu não de projetos de longo prazo envolvendo capital para a construção de casas – que a TACE requer para validar suas previsões acerca de crises induzidas por bancos centrais – mas sim de papéis tóxicos referentes a recursos inventados por emprestadores e firmas de investimento para securitização (nota do tradutor: venda de dívidas). Na realidade, a crise começou com o pânico engatilhado por calotes dos tomadores de empréstimo subprime vendidos como dívidas (securitizações) prime.
Em resumo, a TACE não se enquadra nos fatos da crise. Uma correção de preços em certas áreas do mercado residencial (outras áreas mantiveram preços estáveis ou sofreram pequenas quedas) não é capaz de explicar um pânico sistêmico em escala mundial.
O que a crise exibiu foi a proposição de que o “livre” mercado, como ele sempre operou no mundo, pode e de fato falha em termos de justiça comutativa e justiça distributiva, e por uma simples razão, a falha moral de inumeráveis atores no mercado na forma de pura ganância – ganância multiplicada pela força e confiabilidade de inúmeras e publicamente conhecidas corporações de crédito – levou a uma legião de abusos de mercado.

Notas de rodapé:

[1] De fato o rifle é, ao seu modo uma das causas, a causa material, mas não é a causa eficiente.
[2] Não é curioso como o liberalismo radical, que deveria enfatizar a liberdade de repente torna-se determinista?
[3] Essa é uma expressão de Ferrara que se refere a alcunha de “Doomsday economists” dos austríacos, que o tempo todo dizem que vai acontecer uma grande crise.
[4] Aqui ele brinca indiretamente com a ideia austríaca libertária de que se algo é consensual, logo é justa.

*Christopher A. Ferrara é jus-filósofo, teólogo católico, um dos líderes do movimento pró-vida nos Estados Unidos e autor de livros como "The great façade", "Liberty the god that failed" e "The Church and the libertarian".

FERRARA, Christopher A. The Church and the libertarian: a defense of Catholic Church's teaching on man, economy and State. Minnesota: The Remnant Press, 2010.

Os artigos aqui republicados têm a única finalidade de divulgar ideias e os trabalhos originais. Para maiores informações procure os originais nos sites, livrarias e sebos credenciados aos autores e editoras.

2 comentários:

  1. Arthur, primeiramente lhe desejo um feliz natal. Gostaria de dizer também que seu site foi uma das coisas dentre várias outras que me deram um "redpill" a respeito da mentalidade liberal, libertária e como ela é fundamentalmente anti-cristã por natureza. Dito isso, gostaria de lhe perguntar se você tem planos de fazer uma resenha do livro do liberal Jorge Caldeira, "História da Riqueza no Brasil" ?

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  2. No momento, não. Obrigado por acompanhar o blog.

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