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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Mais além de Burke e seu conservadorismo.



No artigo predecessor desse, eu expus que por detrás do pensamento burkeano existe sérias falhas. Existem, portanto, pontos de compatibilidade e divergência, como é o normal em qualquer autor.
Como elemento de pura razão prática, a mudança gradual e a prudência são elementos compatíveis, mas a filosofia de Burke em si, não se resume a isso, e, portanto, mesma não é adequada para um católico.
1     
     Primeiro porque ela é liberal e aceita o liberalismo. Como diz F. Dreyer: 

"   Burke's theory was orthodox Whiggism in the sense it was compatible with Loackean principles. Many of the Burke's most important pinciples were in fact lockean" [Burke's Politics - A Study in Whig Orthodoxy] – Para saber o grau de compatibilidade da doutrina católica e a doutrina de Locke, sugiro o artigo de Willian Frota (resenha) sobre a ideia de Liberdade..

2      Dreyer ainda aponta que para Stanlis, a base de Burke era eclética, não incluía só Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e os romanos; mas também influências da filosofia moderna. Como listei no primeiro texto, Hume foi de grande influência sobre Edmund Burke. Dreyer ainda aponta que em Natural Rights and History, Leo Strauss mostra que existem laivos de hegelianismo em Burke, embora sutis.

"Leo Strauss's Burke is part thomist and part hegelian" - [Burke's Politics - A Study in Whig Orthodoxy]

3   Burke, importa dizer, não tinha uma metafísica coerente. Ao passo em que o mesmo afirma a existência de formas essenciais, ele as vê presas a si próprias, sem conexão direta com o transcendente. Por isso, Leo Strauss aponta que sua teoria do belo é fechada em si e não tem ligações entre beleza e virtude, ou algum outro princípio transcendente recaindo numa apreciação meio kantiana, meio lockeana do mundo.



O próprio Pappins diz: "Burke is not a systematic philosopher". [The Metaphysics of Edmund Burke]

Retornnando ao ponto número 1, vemos ainda sobre os princípios liberais de Burke, pois como diz Leo Strauss: "Burke does not reject the view that all authority has its ultimate authority in the people or that all authority is ultimately derived from a compact of previously "uncovenanted" men."

Isto significa que para Burke a nação, como um todo orgânico entre as partes (famílias, comunidades, são soberanas; o que implica numa autonomia do temporal em face do eterno. Erro nesse ponto bem parecido com Maritain. Não é de se estranhar que Pappins tenha escolhido Maritain como seu principal tomista de comparação com Edmund Burke, tanto que Miguel Ayuso já chamara o francês de um conservantista involuntário em referência a Burke.

Todo poder vem supremamente de Deus, e através do povo é exercido, como ressalta Christopher Ferrara em “Liberty, the God that failed”. Outra evidência é dada por Pappins quando ele transcreve o próprio Burke: “our allegiance to our domicle, to our community, and to our nation are not to be obtained by a rational assent [...]but for our natural feelings and sentiments".

Burke nega assim que haja princípios perenes racionalmente inteligíveis que nos liguem a nossa terra e que nos indiquem o caminho da lealdade. Argumento próximo ao de Smith na teoria dos sentimentos morais. Burke afirma o sentimentalismo como a ligação, e não um dever metafísico, ou como ele diz, um "extolled princple". O mesmo por consequência ele afirma sobre os estados da sociedade. "Why? [...] its natural to be so affected". Ainda Pappins: "He is highly skeptical of the fruits of speculative inquiry, specially those which bear on the existing social conditions". Ele apenas reconhecia a hipótese de que isto poderia ter a ver com o próprio Deus. Novamente, uma autonomia do temporal exagerada frente a Deus. Para a teologia católica, a civitas/pólis é fruto de uma disponibilidade racional do homem. A sociedade política não é algo instintivo, como que animalesco, mas racional. É a razão que comanda os sentimentos, não o inverso.

Retornando ao ponto 2: O ecletismo do suposto escolasticismo de Burke se deve ao fato de que ele nunca leu diretamente os principais escolásticos medievais, exceto alguns tardios como Suárez. O próprio Pappin diz:

"Like Stanlis, Canavan willingly acknowledged the influence of Common Doctor on Burke, but he also admits that this influence is not directly cited by Burke. [...] The problem of the lack of evidence that Burke had direct acquaintance with Aquinas is taken on saquarely by Wilkins." [The Metaphysics of Edmund Burke]

E agora retornando ao ponto 3: Pappins diz que para Burke havia essencialmente nas coisas um princípio de mudança e de manutenção. Para a filosofia tomista, a mudança é material; pertence ao escopo da matéria e não da forma. Para Burke, substancial, estava na essência dos seres de tal forma, que a própria natureza espiritual estaria sujeita a ela.

"If any intelligible aspect of reality reveals iteslf to Burke is that of change and stability [...] That there is a structure that accomodates change (in itself a metaphysical princple)".

Uma coisa é dizer que a mudança é objeto da matéria, presente junto a forma do ser, outra é dizer que a essência do ser traz a necessidade da mudança, como se esta fosse um imperativo divino.

According to Saint Thomas, change is one of the subjects of natural science; it is its obiectus formali. This idea is derived from Aristotle and was well-known among mediaeval philosophers. Aquinas says: "Natural science studies natural things, things with an interior tendency to move and change”. 

Diz Dominika Serafinowicz em "Aquinas’ concept of change and its consequences for corporeal creatures".

A mudança nos seres metafísicos é de ser, potencia. Em Ente e essência, a substância dos seres incorpóreos é descrita como “forma + ser”; não tendo portando matéria nem seus acidentes. Mas os seres sensíveis são “forma + matéria + ser”; no qual a mudança não apenas é da ordem da potência do ser, mas da potência da matéria. E segundo a teologia católica a mudança da matéria era desejada até um certo ponto, não da sua forma presente decaída pelo pecado original.
Esse tipo de erro de Burke é uma das razões pela qual Dreyer e Strauss vê nele uma espécie de hegelianismo. "We all must obey the great law of change" It is the most powerful law of nature [...]" - Diz Burke apud Pappins.

Ou seja, a mudança não era uma possibilidade, era um dever moral derivado da própria essência das coisas; resistir as mudanças era sempre errado. Elas deviam ser acomodadas de modo a preservar as coisas. Por isso a postura do conservador é reativa, diferente da do reacionário. Burke, portanto, tem inúmeros pontos destoantes da fé católica e na melhor das hipóteses, é um autor subsidiário para o pensamento político. Tanto Pappins quanto Dreyer, inclusive, mencionam que Burke durante muito tempo foi visto como um autor utilitarista – confundido na visão deles – até que Leo Strauss teria resgatado sua visão jusnaturalista. Um jusnaturalismo já bastante influenciado pelo nominalismo e que fazia um meio-termo entre o jusracionalismo dos protestantes e o da escolástica decadente do século XV e XVI. Santo Tomás jamais seria confundido com tal coisa ou qualquer escolástico ortodoxo. 

Em outras palavras, se Burke foi confundido com tal coisa é porque a incoerência de seu pensamento dá muitas margens a leituras utilitaristas, especialmente de burkeanos modernos como Theodore Dalrymple, cujo melhor exemplo é o livro “Em defesa do preconceito”, ou o português João Pereira Coutinho em "As ideias conservadoras". Nas suas reflexões sobre a revolução francesa, Burke discorre enormemente sobre a utilidade da tradição e a vantagem dos preconceitos internalizados no povo. Ora, junte essa dubiedade e esse liberalismo com tais discursos, e não se teria outra coisa. 

No seu livro "Da direita tradicional a direita moderna", o professor César Ranquetat Júnior comprova ainda, que a abordagem conservadora, por pretender-se não ideológica, acaba abrindo espaço para um tipo de filosofia pragmática e, ás vezes, utilitária, o que faz o conservador recair num presentismo. A adesão pura e simples ao status quo, pela simples razão, acima já vista que a mudança é imparável, inevitável e até mesmo necessária, sendo a função do conservador ampará-la em sólidos fundamentos da experiência e da tradição, para que seus frutos sejam benéficos. Ora, o presente não é nada mais, nada menos, que o tempo. A história no seu ponto último. João Camilo de Oliveira Torres na "Interpretação da realidade brasileira", assim como João Pereira Coutinho, afirmam a ideologia como sendo uma adesão ao tempo, ou a um passado idílico ou a um futuro utópico. O conservador por rejeitar ambos - quer percebam os autores ou não - recaem no presentismo. Ora, o tradicionalista apela aos princípios, assim o faz também o reacionário e o regressista, e ao fazê-lo, liga-se a transcendência, ao Deus que ensina a palavra, o logos, a finte de toda a Tradição. O conservador não chega tão longe, dado que preso está no hic et nunc, no imanente. Assim, não percebe que o presente é apenas um aspecto que medeia o passado e o futuro, a aparência da tradição e o progresso. De tal forma que, em realidade, ao defender o presente, o conservador defende uma síntese instável de progressismo e tradição, que não tendo como se equilibrar sem decair numa das duas formas, converte-se assim (tal como o próprio conservador), num progressista muito gradual. O conservadorismo é um progressismo involuntário, prudente e realista, destoando do progressismo convencional, utópico porém pragmático.

Para finalizar, não custa lembrar que Burke também critica os exaltados ingleses do clube de Old Jewry pela sua visão radical, embora não discorde dos princípios? Que princípios? Os dos membros do clube, que eram cristãos protestantes calvinistas ou convertidos ao calvinismo vindos do judaísmo. O clube tinha esse nome, pois, ficava no coração financeiro de Londres, o antigo gueto, por isso o nome “Old Jewry”, ou velha judiagem.

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