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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Por que o Estado é mais necessário do que você pensa? (1/6)


A onda da nova direita elevou ao palco do debate virtual um antiestatismo absolutamente irracional, financiado, é claro, por grupos políticos liberais clássicos e libertários, como o Instituto Liberal, o Instituto Millenium, o Instituto Mises Brasil, os Estudantes pela Liberdade e, por fim, o Movimento Brasil Livre. Quando os membros da nova direita não são "abolicionistas estatais" são minarquistas, e defendem um estado guarda noturno. Não entrarei aqui em aspectos puramente doutrinários da Igreja Católica, embora possa abordá-los eventualmente, vou tentar dar boas razões laicas para quem ainda não está convencido de que o Estado (ou governo) é necessário.

Primeiramente vamos definir o que entendo por Estado. Estado é em essência um corpo burocrático em sentido weberiano, composto por um grupo de administradores profissionais cujas ações não são livremente decididas, mas são guiadas por objetivos racionalmente traçados expostos em leis e regimentos internos com uma mentalidade utilitária e marginalista. Os meios de acesso a esses cargos são mais ou menos impessoais, por meio de critérios seletivos como provas e concursos. No Estado a pessoalidade é resumida ou reduzida a nomeações políticas e acordos políticos personalistas apenas a nível políticos mais elevado, como no parlamento ou no executivo e seus ministros. Em todo o restante da cadeia predomina uma impessoalidade administrativa empresarial. A centralização administrativa expansiva acaba sendo uma característica do Estado em decorrência disso. Essa concepção de governo (estatalizada) nem sempre existiu na história, ela é fruto da mentalidade utilitarista e racionalista moderna, razão pela qual o chamamos de Estado moderno. O que caracteriza o Estado como o conhecemos não é tanto o seu monopólio da força, embora seja uma de suas características, uma vez que o governo não depende de monopolizar a força para ser legítimo, como no caso do medievo, mas sim sua estrutura despersonalizada e sem rosto. Esse é o órgão social que Jacques Maritain em "O homem e o Estado" definiu como sendo a "cabeça" do corpo político e a menos importante em grau administrativo. 

Essa burocracia não é necessária para haver governo, uma vez que na maior parte da história o governo não foi burocrático (medievo e primeira modernidade) ou foi muito pouco burocrático (Egito Antigo, Império Romano e Bizantino). Entre os tradicionalistas essa é a face da qual eles são inimigos, como no caso do politólogo Victor Nieto García, do meu amigo Leonardo Oliveira, o Conde, ou do jurista espanhol Miguel Ayuso. Tenho uma desconfiança similar com a burocracia, contudo, a técnica moderna e a estrutura política que herdamos do mundo pós-iluminista inviabiliza ou até mesmo impossibilita um governo não-burocrático. Essa é a razão pela qual vejo que os maritainianos têm mais razão nesse ponto que meus amigos tradicionalistas. Então, cabe a nós que misturamos elementos da democracia cristã com do tradicionalismo, sufocar e reduzir ao mínimo possível a importância da burocracia no governo, como bem pontuou Maritain.

O governo mesmo é essencial à natureza humana. Todas as sociedades humanas desenvolveram governos. Desde uma tibo indígena de menor importância no Brasil pré-cabralino, até civilizações altamente complexas como os mexicas, os maias e incas. É da estrutura mesma da humanidade, desde a estrutura familiar, o governo e o poder legítimo de coerção. Quem reconhece isso é, inclusive, um libertário, Stephan Molyneux. Ora, todos aqueles que proclamam que imposto é roubo não podem estar certos. Se o Estado entendido como qualquer governo (e não como um meio de governar) é imoral, então, a natureza humana é imoral, pois nossa natureza é moldada para governar e ser governado. Ora, se o ser humano é um animal moral, sua essência não pode ser imoral. Kierkegaard, o filósofo, no livro "O desespero humano" muito acertadamente pontuou que o "pecado" (entendido aqui como imoralidade) não pode ser um elemento da essência do homem, mas de sua vontade (voluntas) e, portanto, elemento existencial. Essa definição, inclusive, remonta a Santo Agostinho de Hipona.

Se é natural do homem usar a técnica para facilitar sua vida, não seria de se condenar que ele também dela fizesse uso para governar. Razão pela qual alguma artificialidade acaba sendo necessário no governo, e, portanto, ao menos alguma burocracia. Em suma, a soberania individual - o indivíduo libertário - não pode existir simplesmente porque ele é um erro abstrativo da condição ontológica real do homem. O homem não existe por si mesmo, ele não vem-a-ser independentemente, ele depende de outros "homens" para existir. Ele precisa da decisão de um homem e de uma mulher para que venha ao mundo. Portanto sua individualidade não é absoluta, e como tal essa individualidade limitada só pode se expressar por um uso limitado de sua vontade. Jacques Maritain acabou tendo sua exposição sobre a formação da sociedade política confirmada empiricamente pelos psicólogos evolucionistas como Robert Wright, inclusive. Portanto, se você não consegue levar Deus a sério nem mesmo como hipótese, pelo menos isso mostra que duas áreas diferentes de estudo concordam num ponto. 

Maritain mostra como as “famílias clânicas”, ao se encontrarem com outras, dão origem às tribos, que pela sua expansão demográfica e econômica, precisam “eleger” para manutenção da ordem, líderes políticos sobre os quais residirão o poder de coerção. É claro que eleger aqui não tem sentido democrático, essas representações nascem organicamente da interação entre as pessoas humanas concretas dentro dessas sociedades, mergulhada na imperceptível teia de símbolos culturais que os abarcam. Maritain derruba todo o contratualismo numa só tacada. Assim sendo, o governo (essência) é da natureza mesma do homem e o Estado (acidente) é apenas um meio de governar. Sendo o homem um animal essencialmente moral, não pode ele ser essencialmente imoral ou amoral, sendo a imoralidade uma ação ou da vontade (Kierkegaard/Santo Agostinho) ou fruto da ignorância (Sócrates/Aristóteles). Caso o homem fosse um animal imoral, sua existência estaria condenada a desaparecer, já que ele seria eliminado pela sua própria mesquinharia e autodestrutividade. Mas se o homem ainda existe é, porque de alguma forma, ele procura o que ele julga ser o bem ou o que é bom para si e para aqueles com quem ele se importa.

Portanto, a objeção ao Estado é útil enquanto ele é um meio mau, o que não estou certo quanto a ser em todos os casos, embora guarde em si a semente de sua expansão, o que redobra a necessidade da força constante e da vigilância constante quanto á sua expansão. E a objeção ao governo só é sensata e justa quando o governo é despótico e não visa estabelecer o bem comum, entendido aqui num sentido moral de justiça, como na justiça comutativa, justiça geral, justiça distributiva e justiça social, conforme no direito natural clássico. (Para melhor entender estes termos, recomendo a leitura do livro liberalismo e justiça social de Ubiratan Borges de Macedo, escolhi esse por não ser um livro de teor religioso).

1- Todo governo que é regido pelo bem comum é legítimo.
2- A existência de um Estado é uma forma de governar.
3- Quando o Estado exerce o governo regido pela busca do bem comum, ele é legítimo.

Em breve, a segunda parte do texto. Aguardem.



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