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quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Burke não é o bastante: Da impossibilidade do liberal-conservadorismo (Parte 1/3)


*Tradução de Carlos Magno de um artigo do The Hipster Conservative.

Uau!”, alguém poderia dizer, ao ler este título, “esses jovens presunçosos, arrogantes, já estão renegando o conservadorismo? bom, não demorou muito.” No entanto, se a inércia tradicionalista habitua o homem a qualquer coisa, seja paciente e nos ouça. O título sexy e estimulante serve apenas para obter uma proporção indevida do interesse do leitor (i.e. o autor faz de tudo por atenção). [E, portanto, um verdadeiro hipster em sua inconsistente busca e rejeição da atenção pública.]

Este ensaio se coloca como o primeiro de uma série que vai explorar os limites do conservadorismo de Edmund Burke. Todo hipster conservador ama esse angloirlandês, por suas prestimosas contribuições à filosofia política e muitas outras artes. Para os conservadores de convicção tradicional, ele é o guardião dos verdadeiros princípios do conservadorismo; ele se previne do neoconservador intervencionista, do libertário entusiasmado, e de quem quer que se vanglorie de ser “revolucionário”. Devemos ao Pai do Conservadorismo Moderno uma gratidão obrigatória; mas lhe devemos, também, uma cuidadosa reflexão crítica. Espero não ser uma presunção, o alegar que Burke desejaria isso. Neste projeto, vou examinar as insuficiências de suas ideias, quando aplicadas à nossa particular situação histórica e ao estado atual da consciência humana. Neste artigo, vamos tratar do problema das tradições, enquanto os outros vão contestar a evolução cultural e a natureza da civilização.

Primeiro, consideremos uma evidente dificuldade que, por toda parte, frustra bons conservadores: a ausência de tradição, na situação contemporânea. Você pode substituir “a situação contemporânea” por “sociedade atual”, “os dias de hoje”, “tempos modernos”, e até mesmo “agora”; Mr. Dylan disse-o melhor que ninguém: The times, they are a-changin’. Esta mudança denota mais que a sempre consumidora mutabilidade da vida, que fazia Heráclito chorar enquanto se refestelava sob o sol de Éfeso; refiro-me, em vez disso, à presente situação dos Estados Unidos (e talvez da Europa) em que, de modo geral, as gerações posteriores ao baby boom não receberam nenhum corpo significativo de antigas tradições, sobre o qual construir ou sustentar uma próspera comunidade humana. Qualquer sanidade que o passado nos ofereça é consumida numa imensa inflação de ideias, cuja maioria prova-se ser mais vazia e efêmera que essas contribuições à humanidade, que resistiram ao teste do tempo. Para unir aos seus futuros filhos as gerações pretéritas, Burke dependia de uma tradição viva, orgânica. Ele considerava que uma sociedade saudável experimentaria um crescimento natural, moderado, e corretivo, a partir das raízes profundas de uma sabedoria herdada; infelizmente, o Ocidente progressista de tudo fez para descartar esse corpo de conhecimentos, hábitos e padrões de sucesso esmagador.

Os Estados Unidos acham-se numa situação particularmente diferente, por causa de nossa herança. Conforme eu e meus colegas já observamos nestas páginas, ao menos parte da narrativa americana tem origem nos puritanos; esta seita protestante radical parece moderada, no entanto, quando comparada às teorias iluministas que se lhe arrastavam detrás. Locke, Paine, os “salutares” escoceses esclarecidos – são todos pensadores bem conhecidos, para qualquer pessoa familiarizada com a “era da fundação”. Tais ideias liberais, completamente modernas, estão lado a lado com fibras pré-modernas da herança americana (estas últimas são os filamentos ocultos que Russell Kirk tentou reabilitar). Contudo, embora haja uma alternativa, a tradição conservadora americana, a política racionalista, e os princípios reformistas do Whig Party, têm uma influência profunda na mente americana. Um aspecto desse conjunto de hábitos mentais é uma rejeição à hierarquia autêntica e à tradição. Digo “autêntica”, vez que, conquanto os liberais não prestem nenhuma lealdade referencial ao que é antigo, eles de fato usam a hierarquia e a tradição como instrumentos arcaicos para o progredir-se em direção a algum futuro inevitavelmente melhor. Há seculos, esses hábitos do Iluminismo liberal têm feito parte da vida sociopolítica americana; ironicamente, o progressismo não é senão uma tradição, para boa parte dos americanos. Simplesmente, não podemos agora recorrer às tradições recebidas de nossos pais; pelo menos algumas delas são contraproducentes. Burke não negava que diferentes escolas de pensamento haviam existido, ao longo da história, mas ele acreditava que os jacobinos e sua índole revolucionária haviam, radicalmente, rompido com a Grande Tradição do ensinamento ocidental. Ora, o jacobinismo, e uma série de outras aberrações, foram por sua vez transmitidos, no decorrer de dois séculos, ao passo que todas as crenças mais antigas foram submetidas à periferia do discurso, onde parecem assemelhar-se uma à outra, em função de seu contraste com o liberalismo iluminista. 

Com este problema em mente, as técnicas moderadamente pragmáticas do conservadorismo burkeano adentram águas agitadas. Nas palavras de William James, o que Burke realmente cria sobre virtude, bondade, e uma próspera comunidade de almas, não é mais uma “opção viva”. Já não há um consenso bastante forte, que sustente a tradição anglo-americana ou inglesa, a fim de os americanos serem vistos como moderados, se seguirem essas heranças veneráveis. Burke defendia a mudança lenta, moderada, de um tipo que não predominou, nos anos seguintes à sua carreira. Os costumes contemporâneos confundiriam a ele e seus pares, bem como os deixariam completamente horrorizados.

Hoje, uma pessoa que recorra à sabedoria dos “maiores” que faleceram parece muito, bom, imoderada. A fim de buscar uma vida de acordo com a tradição, o indivíduo deve, deliberadamente, rejeitar os modismos morais e políticos, sempre mutáveis, da sociedade. Deve tornar-se, numa palavra, reacionário. Há meros duzentos anos, os cidadãos, normalmente, discutiam sobre a constitucionalidade de um banco central; desde os barões medievais, se não desde as antigas cidades gregas, pensadores e ativos estadistas, outrossim, ponderavam em que medida os subordinados poderiam rejeitar os editos de uma autoridade central. Agora, um candidato que professe uma linha particular de federalismo é visto como um lunático desvairado; um dinossauro constitucional. 

A moderação valoriza a preservação do status quo. Para os batizados na ética da tradição, surge uma inquietante questão para o século XXI: “O que acontece, quando o status quo é monstruoso?” Nós criamos, e agora mantemos, armas capazes de destruir o mundo várias vezes; tentamos resolver os óbvios resultados da promiscuidade sexual, alvejando os adolescentes com camisinhas e abortivos; supostamente, oferecemos paz e segurança mediante um intervencionismo neurótico; transformamos as notícias diárias em entretenimento. (Para que o leitor não me entenda mal: isso é amiúde tão tolo a ponto de desafiar a sátira.) Nem me façam começar a falar sobre agricultura, e todo o nosso sistema alimentício. Vários sistemas éticos veneráveis exigiriam de seus adeptos que rejeitassem, por atacado, essas posições aceitas, assim lançando-as fora do Campo da Moderação. Nossa situação moral atual fez com que um moderado, como David Brooks, associasse a tradição com “lutar contra o Homem”. A tradição já não cai em nosso colo, a fim de nos formar; devemos buscá-la, e então, a serviço dela, nadar contra a corrente cultural de hoje em dia. Atualmente, de fato, o burkeano funciona como um reacionário, não exatamente tão bom quanto o filósofo havia pretendido. 

Em conta a lamentável condição atual, o relativismo histórico nos tenta a relegar Burke ao seu próprio dilema cronológico particular, lutando para orientar-se em meio ao Iluminismo. Esta é uma inadequada resposta ao filósofo. Tal inesperado fruto do pluralismo – a destruição da tradição – não é senão uma crise cultural que pode ser melhor respondida num espírito de insubmissão reacionária. A retórica de “movimentos” e “revoluções” se esgotou e, francamente, é invalidada pela posição do conservadorismo burkeano quanto à crítica da ideologia. Não podemos simplesmente evoluir, de forma orgânica, com uma tradição que cresce continuamente: o ideal burkeano de uma comunidade estabelecida. Em vez disso, devemos recorrer a um corpo de costumes e crenças arcaico ou “defunto”, em desafio ao progressismo. Toda vez que me levanto, no metrô, para ceder a uma mulher meu assento, em verdade ergo meu punho contra os poderes idólatras do igualitarismo. Todo tomate cultivado por conta própria, e livre da sempre invasiva, sempre desumana indústria alimentícia, é uma arma forjada em revolta. Disseram-me que o gentleman foi extinto com a queda da aristocracia. Digo que ele nunca morrerá, enquanto eu caminhar sobre a terra. 

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