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quarta-feira, 1 de julho de 2015

As múltiplas formas do welfare state - parte 1

O texto é um excerto de um excelente artigo presente no último livro lançado pela Fundação Konrad Adenauer, chamado "O panorama socioeconômico do Brasil e suas relações com a Economia Social de Mercado", o artigo em questão se chama "Subsidiariedade e universalismo como princípios organizativos do estado social", ele aborda a tentativa inicial de fazer programas de renda mínima, depois a tentativa do SPD fazer um welfare clássico e por fim, o meio-termo tão prezado pela Democracia Cristã.

KERSTENETZKY, Jacques.¹ KERSTENETZKY, Celia.²


SUBSIDIARIEDADE x UNIVERSALIDADE - A batalha de Welfare
Nesta seção nos voltamos para a explicitação dos princípios que constituem a alma mater dos modelos sociais alemão e dinamarquês, respectivamente, o universalismo e a subsidiariedade. Vamos ainda analisá-los a partir do contexto da reforma da política social alemã no imediato pós-guerra, que é o cenário onde se desdobra o confronto doutrinário entre a democracia cristã e a socialdemocracia. Com o auxílio de especialistas alemães, as forças aliadas de ocupação da Alemanha produziram no imediato pós-guerra uma proposta de reforma da política social que a aproximava bastante do modelo beveridgiano de políticas universais e uniformes. Caso implementada, a reforma teria sido concomitante à reforma britânica (1945-1948) e, em espírito, bastante semelhante. Basicamente, propunha a universalização e a uniformização dos benefícios monetários da seguridade social, incluindo categorias tradicionalmente excluídas (como os autônomos) na elegibilidade a benefícios básicos. Em contraste com a ideia britânica, a ideia era reduzir o subsídio estatal a zero, fazendo o financiamento do esquema repousar exclusivamente em contribuições. Várias influencias concorreram para esse desenho, entre elas a participação de especialistas britânicos recrutados na fina flor do serviço público inglês, o envolvimento de experts alemães com fortes vínculos com os sindicatos, mas também a preocupação das forças de ocupação, sobretudo britânicas, com a autossuficiência do esquema alemão e o alívio do bolso do contribuinte inglês na forma de menores subsídios. A proposta encontrou forte oposição no seio das forças de ocupação e principalmente entre os parceiros alemães, e acabou sendo retirada quando a própria Grã-Bretanha deixou de prestigiá-la (ela foi adotada apenas no setor russo). Em seu lugar foram retomadas as políticas sociais da época de Weimar que, como vimos na sessão passada, remontam à tradição de política social bismarckiana, o que foi ratificado pelo primeiro parlamento alemão do pós-guerra (legislatura de 1949 a 1953) sob a liderança da democracia-cristã. A tradição foi seguida com apoio da seguridades social em contribuições, e uma forte correlação entre ganhos no mercado de trabalho, contribuições e benefícios monetários a serem auferidos nas várias possíveis contingências (idade, doença, morte, desemprego), preservando os diferentes status presentes no mercado de trabalho. Ao fim da primeira legislatura a Alemanha retoma a liderança na política social europeia, com quase 20% do produto interno líquido destinado à seguridade social social (Grã-Bretanha 12,5%; Suécia 13,5%) - um dado significativo, mesmo considerando o número elevado de beneficiários devido à guerra e um produto nacional comparativamente baixo (Hockerts, 1981), o que tornava os benefícios inadequados e deixava muitas lacunas.³

A socialdemocracia também produziu um plano próprio para reformar a política social alemã, em 1952. Esse plano foi fortemente influenciado pelo Relatório Beveridge, numa curiosa "autoinfluência", na medida em que um de seus mentores, Walter Auerbach, foi também um dos consultores de Beveridge na formulação do plano inglês quando se achava imigrado em Londres. Outra influência identificada é a da política social sueca e da conferência de Philadelphia, de 1944, da Organização Internacional do Trabalho. O plano propugnava o universalismo e a uniformização da cobertura, como políticas de garantia de renda que visavam a eliminação da pobreza, preocupação de resto compartilhada com o plano democrata cristão. Mas, no espírito do relatório britânico, introduzia novas responsabilidades públicas (frente à tradição de política social alemã), as "pré-condições", para o sucesso da política social: Uma política econômica que promovesse o pleno emprego, a provisão abrangente de saúde e serviços de reabilitação para o trabalho, e  provisão de prestações familiares (child allowances). Ademais, a socialdemocracia propunha que se pudesse acumular por sobre os mínimos nacionais iguais da seguridade universal benefícios relacionados aos ganhos, que seriam financiados por contribuições, como no modelo sueco. Esse debate permite singularizar a divergência de pontos de vista doutrinários: a política social defendida pela democracia cristã tinha uma natureza mais passiva e compensatória e, em particular, não era motivada pela ideia de correção da distribuição de renda e bem-estar gerada pelo mercado. Hockerts (1981) observa que a democracia cristã era campeã de valores como iniciativa privada, incentivos à responsabilidade individual pela própria segurança, e limitada intervenção do estado na vida econômica e social. O plano do partido socialdemocrata, em linha com o trabalhismo britânico e a socialdemocracia sueca, em contraste, pressupõe um papel também ativo para a política social, por exemplo, na promoção do pleno emprego, e não apenas na compensação por desemprego, e uma função preventiva, não apenas compensatória, ao por exemplo, promover o aumento da capacidade de trabalho (p. ex. provisão de saúde e programas de reabilitação) e impulsionar a demanda de consumo ou estabilizá-la em momentos de crise e ao longo da vida das pessoas.
Aparentemente estaríamos confrontando dois modelos, um baseado na maximização da responsabilidade individual, outra na maximização da responsabilidade pública. Contudo, a distinção é mais sutil. Uma proposta encomendada por Adenauer no anos 1950, antes da grande reforma da previdência Alemã de 1957, revela o acolhimento parcial do paradigma britânico de prevenção e reabilitação, e no geral, o reconhecimento de que o sistema econômico tal como organizado engendra custos sociais (linguagem muito utilizada por Richard Titmuss, um dos mais importantes personagens da política universalista britânica do pós-guerra) que precisam ser neutralizados. Há muitos contatos entre especialistas alemães envolvidos no projeto e especialistas alemães envolvidos no projeto e especialistas ingleses afinados com a reforma Beveridge, e vantagens e desvantagens são reconhecidas no plano britânico: entre as primeiras, a simplicidade e a praticidade, os princípios da prevenção e reabilitação; entre as últimas, os benefícios muito baixos e o desenvolvimento de um welfare ocupacional (no qual empresas pagam por benefícios diferenciais para seus trabalhadores, em adição à pensão básica universal). Na linha da prevenção, o grupo tende a aceitar a tese geral de Beveridge de que o Estado tem de se envolver na garantia das "pré-condições": garantir o direito ao trabalho, adotar uma visão produtivista das políticas sociais, incluir as prestações familiares (para prevenir a pobreza infantil e das famílias) que não tinham lugar cômodo em um sistema baseado exclusivamente no "problema do trabalhador", ou seja, a perda eventual da capacidade de trabalhar. A despeito da proposta do grupo de especialistas montado por Adenauer encontrar fortes resistências na democracia cristã e de consequentemente não ter sido encampada, foi no contexto do debate que seguiu que emergiu o princípio de subsidiariedade, para esclarecer o escopo e o limite da intervenção do Estado apoiada por este grupo político.

 Em 1957, Adenauer faz aprovar a grande reforma da previdência alemã. A reforma é grandiosa, representando forte correção dos benefícios e a introdução das chamadas "aposentadorias dinâmicas" que são reajustadas de modo a alinhar os padrões de vida do trabalhador quando inativo com os que obtinha quando ativo. A Alemanha confirma a posição de liderança europeia na política social (em níveis de gasto social, contribuições e benefícios), tendo sido mais bem sucedida que a Grã-Bretanha em afastar o fantasma da pobreza na velhice, por meio da promoção de uma vasta redistribuição horizontal (entre ativos e inativos,), do reforço do status e ao desempenho. A Inglaterra contava então com benefícios igualitários que mal cobriam o mínimo de subsistência e acabavam criando fortes desigualdades (entre ativos e inativos, e entre inativos com pensões ocupacionais e com pensões públicas). O fluxo migratório então se inverteu, sendo a Alemanha o novo destino dos especialistas ingleses interessados em entender o novo sistema e as causas de seus sucesso. [...] A grande reforma de 1957 se assentou no princípio da subsidiariedade. Em termos estritos, este princípio que remonta à doutrina social católica, quando transposto para o estado social assenta a intervenção deste na noção de que sua principal função é garantir que os diferentes órgãos sociais inferiores, que se localizam entre o indivíduo e o Estado, possam eles próprios assumir as responsabilidades por sua própria condição, e que haja harmonia entre esses órgãos a fim de que seja mantida a ordem do todo, uma ordem orgânica natural. A intervenção do Estado deverá ser sempre subsidiária, o último recurso quando falham os demais, mas é central na produção ou no fortalecimento de "comunidades", e claramente é essencialmente "social" na produção/reprodução de solidariedades e sociabilidades. Esse princípio se assenta em uma teoria social segundo a qual a sociedade é uma amálgama de grupos ou corpos sociais dentro dos quais os indivíduos devem florescer como pessoas, isto é, seres que só fazem sentido dentro de um grupo social que a eles atribui funções e papeis. Firmas, associações, sindicatos, famílias, são alguns desses grupos. O mais importante é a família, no seio da qual se desenvolvem trabalhadores e empregadores, que deverão cooperar no mercado, e cuidadoras, que se responsabilizarão pelos dependentes e cultivarão os laços comunitários da vizinhança; A política social fortalece o grupo, este cuida do indivíduo (Van Kersbergen, 1995).

Enquanto a chamada grande tradição católica vaticanista, tendo evoluído para uma compreensão da questão social como engendrada pelas próprias relações econômicas e sociais, sustentava à época que o principal esteio do pobre é a obrigação da caridade do cristão, a democracia cristã europeia desenvolve uma "pequena tradição" que, reconhecendo a origem da questão social nas economias de mercado, assinala um papel importante para o Estado, dada a escala do problema. Esse papel, contudo, se realiza no reforço ás comunidades (e seus vínculos) em sua capacidade de autoproteção e não na provisão direta de serviços. Nas condições capitalistas, em que o sustento dos trabalhadores depende da remuneração que obtém no mercado de trabalho, é fundamental que a remuneração seja adequada e que o homem e sua família tenham sua existência digna atendida de modo suficiente por esses ganhos. Na incapacidade de trabalhar, deve o trabalhador e sua família poder contar com benefícios monetários que emanem de fundos de seguro coletivamente organizados por meio de seus vínculos com o emprego e o ramo de ocupação - o acúmulo desses fundos e sua administração devem ser organizados autonomamente pelos parceiros na cooperação social, trabalhadores e empregadores. Apenas na ausência desses corpos sociais é que cabe ao Estado prover assistência direta. Mas, ele deve arbitrar as relações sociais de modo a garantir a eficácia destes como provedores em primeira instância de bem-estar. A propriedade privada, que separa, na produção, capitalistas e trabalhadores, é concebida como natural (e não histórica e objeto de contestação), mas junto com o direito a ela o proprietário contrai a obrigação de desenvolver relações justas com seus trabalhadores, de quem depende para os seus ganhos, do mesmo modo que aqueles que dependem destes, e o estado é o fiador dessas relações equilibradas. Nesse sentido ele estimula o desenvolvimento de grupos industriais, no interior dos quais trabalhadores e empregadores arbitram conjuntamente a gestão de negócios, em um processo conhecido como co-determinação. [...] A seguridade social estatutária, erigida como principal política social do estado subsidiário, cuida de fornecer cada órgão social em sua capacidade de satisfazer as responsabilidades que lhes são próprias (e não de garantir a cada indivíduo direitos sociais individuais): fazê-la recair em contribuições de trabalhadores e empregadores, reforçando a responsabilidade de grupos industriais por seu membros, fazer recair sobre a unidade familiar na pessoa de seu chefe a responsabilidade de prover a subsistência de seus membros (por meio de seus proventos, quando ativo, e de sua aposentadoria e pensão quando inativo e não mais presente), o que inclui suas necessidades de consumo de bens e de serviços, e sobre sua esposa a responsabilidades pelos cuidados domésticos. A inclusão de "prestações familiares" nesse sistema foi equacionada com base na responsabilização dos empregadores (suas contribuições), organizados em ramos industriais, que dessa forma organizam fundos e governança.

Os democratas cristãos optam pela subsidiariedade.
Em particular, a seguridade social subsidiária é obediente aos princípios da justiça distributiva (como o princípio da equivalência entre benefícios e contribuições), mas não a princípios de justiça redistributiva pelos quais os indivíduos com ganhos maiores devem subsidiar melhores ganhos para os com menores recebimentos. As desigualdades são entendidas como naturais, corolários da ordem orgânica, constituída da harmonia entre distintos corpos sociais, com capacidades e desempenhos diferentes, porém todos igualmente necessários. Essas diferenças devem ser preservadas e reconhecidas no status social diferenciado (Van Kersbergen, 1995).
O princípio da subsidiariedade faz fronteira de um lado com o Estado minimalista, voltado principalmente para políticas assistenciais financiadas por impostos e providas apenas para pobres meritórios, e sua crença na capacidade de economias de mercado proverem bem-estar, de outro, com o Estado provedor de tipos social-democrata ou baseado em planejamento central. Há rejeição explícita do laissez faire e a concepção de que uma economia de mercado tem de estar enraizada social e moralmente, porém há limites claros ao protagonismo do Estado indicados por sua função subsidiária. O contraste foi inicialmente com um Estado planejador do tipo socialista, mas no debate com a socialdemocracia, foram rejeitadas também as funções "keynesianas" do Estado, como seu papel eventual na promoção do emprego. (Essa rejeição, pode-se adiantar, foi em grande parte facilitada pelas circunstâncias peculiares da sociedade de crescimento do pós-guerra europeu, onde o desemprego era uma preocupação apenas eventual e as desigualdades não chegavam a se configurar em ameaças para outras dimensões da vida social.)
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¹ Doutor em Economia pela UFRJ.
² Mestre em Economia pela UFRJ e Ph.D. em Ciência Política (European University Institute).

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