Páginas

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Os cartéis, inimigos do consumidor.¹

ERHARD, Ludwig²

Ludwig Erhard
O conceito de "economia de mercado" está hoje generalizado, e não só na Alemanha. Os próprios adversários da minha política econômica já não se recusam a essa designação. Uma política econômica só pode, todavia, designar-se de social, quando o progresso econômico, um maior rendimento e uma produtividade crescente vão favorecer o consumidor.

O meio mais adequado para conseguir esse objetivo dentro dum sistema social livre é e continuará a ser a concorrência, pilar básico desse sistema. A economia social de mercado obriga-me, pois, a dar toda minha atenção e apoio à luta contra os cartéis e contra todas as limitações da concorrência, nas suas mais variadas formas.

Carlo Mötteli, no trabalho intitulado "Os sindicatos e o sistema econômico", publicado na coletânea "Economia sem milagre" (Eugen RentschverlagErlenbac/Zuricque, 1953, p.303), declara com razão que o sistema econômico livre não só tem de defender-se dos ataques dos sindicatos, como "na fábrica, o patrão por seu lado, ainda demonstra maior desejo de cerrar fileiras contra um verdadeiro sistema de concorrência", e que a tendência para impedir a liberdade do comércio e da indústria pela formação de cartéis não é menor do que a dos trabalhadores para o coletivismo.

Atendendo ao significado e urgência deste problema, esforcei-me, logo a seguir da minha nomeação como diretor da administração econômica (2 de março de 1948), por elaborar algumas propostas tendentes à aprovação duma lei sobre cartéis propriamente alemã, propostas essas que se concretizaram na "lei sobre diretrizes de dirigismo e política de preços após a reforma monetária" de 24 de junho de 1948. De acordo com uma proposta minha, o parágrafo 3º da lei reza assim:
"Na medida em que o Estado não regulamenta o comércio de artigos e produtos, far-se-á respeitar o princípio da concorrência de produtos. Os monopólios econômicos constituídos devem ser eliminados e, até à sua eliminação, submetidos à vigilância do Estado. O projeto duma lei alemã neste sentido deverá ser apresentado imediatamente ao conselho econômico".
 Vale a pena lembrar que o primeiro parlamento alemão do pós-guerra aprovou este texto por grande maioria. Em 12 de fevereiro de 1948, algum tempo depois desta decisão do conselho econômico, os governos militares dos Estados Unidos e Inglaterra haviam promulgado para as respectivas zonas a us-law 56 e a british-ordinance 78. O teor dessas leis era essencialmente o mesmo: proibia-se a concentração excessiva do poderio econômico alemão e determinava-se a descartelização. A sua execução ficava exclusivamente a cargo das autoridades militares. [...]
Deste modo se tentava pela primeira vez na Alemanha abranger legalmente matéria tão difícil. A meu pedido, uma comissão de peritos, à qual pertenciam, entre outros, os especialistas em legislação sobre cartéis, Dr. Walter Bauer, professor Franz Böhm, diretor geral. Dr. Paul Josten, presidente do Senado, Dr. Wilhelm Köppel, Prof. Dr. Willhelm Kromphardt, Professor Bernhard Pfister, apresentou em 5 de julho de 1949 um primeiro projeto de lei de garantia da concorrência, e além disso para uma lei sobre monopólios.

Mas a extinção prematura do conselho econômico, que teve lugar pouco depois, não permitiu o prosseguimento desses trabalhos na repartição de Frankfurt. Não quer dizer que durante estes meses eu não tenha exposto repetidas vezes as minhas ideias anti-cartel publicamente. Declarei, por exemplo, publicamente no "Volkswirt" de 16 de dezembro de 1949:
"Vejo na livre concorrência a melhor arma para obter, quer uma melhoria contínua dos produtos, quer uma justa distribuição do rendimento coletivo, isto é, do PIB. No interesse duma economia de mercado verdadeiramente "social", me é impossível renunciar a esse elemento-motor duma evolução econômica saudável...
O dirigismo patronal a meu ver, não é menos condenável e prejudicial do que o dirigismo estatal. Por conseguinte, também não o podemos reduzir à primitiva fórmula de pró ou anti-cartel. Em toda sua variedade de aspectos, formas e objetivos, e apesar dos infindáveis cambiantes e matizes, a política de cartel, na prática, não pode deixar dúvidas de que todos os acordos de mercado, especialmente no que diz respeito a preços, visam em última análise e sob qualquer forma a limitação da concorrência...
Em minha opinião, todas essas tendências são um pecado contra o sagrado espírito da vida, cuja essência é devir, movimento, evolução, princípios incompatíveis, portanto, com os pesados meios da regulamentação e da estabilização dirigidas."
 Em 27 de dezembro de 1949, disse na Emissora Bávara:
"A liberdade só pode reinar onde não se abuse do poder de a oprimir, onde, integrada no código moral e legal de um povo, ela se torne dever geral e máximo valor da comunidade."
No congresso da CDU, realizado em Goslar, no dia 22 de outubro de 1950, designei a futura lei anti-cartel como peça central da economia social de mercado, pela qual acabarão as posições de poderio da economia privada, com base orgânica ou jurídica, para darem lugar a uma concorrência livre de produtos e na qual o governo federal passará a ter um instrumento eficiente contra acordo de preços declarados ou camuflados. Por meio dessa lei anti-cartel "aplicar-se-ão eficazmente os princípios básicos da nossa política de economia social de mercado". Essa lei será um "marco histórico na reconstrução alemã". [...]

Não hesitei em apresentar ao gabinete o novo projeto de lei anti-cartel, idêntico ao do primeiro período legislativo, poucos meses após a formação do segundo governo de Konrad Adenauer. Apesar das violentas e variadas tentativas para eliminar o princípio da proibição por mim defendido, O Gabinete Federal aprovou o meu projeto por considerável maioria, em 17 de fevereiro de 1954, tendo exprimido o desejo de que o parlamento, na sessão seguinte, tomasse como ponto de partida as deliberações adotadas no primeiro período legislativo. Em 21 de maio de 1954, o conselho federal manifestou apoio à proposta, aprovando por maioria a concepção fundamental do projeto, expressa no princípio de proibição do §1, apesar dos violentos e dramáticos debates que precederam essa sessão. Mas ainda decorreram alguns meses até que o governo federal se decidisse a levar a proposta ao parlamento.

A responsabilidade dessa demora que se prolongou até 22 de janeiro de 1955, é inteiramente minha. Os setores econômicos opunham-se ao meu projeto, fazendo-me ver que a economia não devia ser impelida para uma concorrência sem limites, enquanto o Estado, por meio do imposto arrebatasse ao industrial uma parte exagerada do produto do seu trabalho. Como esta argumentação, do ponto de vista material, era de certo modo justa, concordei com um adiamento, numa altura em que se projetava a reforma do imposto, no que não deixou de ser importante, precisamente o fato de o parlamento se encontrar muito sobrecarregado pelos trabalhos dessa reforma.
Esta espera deu-me de resto nova oportunidades para discutir os quesitos mais importantes desse projeto-lei com os círculos econômicos interessados, sobretudo com a associação federal da industria alemã. [...]

Porque odeio os cartéis?

Interessa-me muito mais expor a minha concepção de cartel, que se manterá válida para além dos sempre variados problemas atuais. Em primeiro lugar, tenho de explicar por que sou um inimigo tão declarado dos cartéis e para poder fazê-lo será necessário reportar-me ao passado.
Esta atitude baseia-se na minha experiência político-econômica, corroborada pela conclusão das ciências econômicas e financeiras de que a economia de concorrência é a forma mais econômica e ao mesmo tempo mais democrática dos sistemas econômicos, e que o estado só deve intervir na evolução do mercado quando for para proteger a competição dentro dele. É um fato histórico e nenhuma doutrina econômica pode negá-lo, que o período econômico liberal constitui um poderoso impulso no desenvolvimento da civilização. Depois que o sistema corporativo, pela rigidez e pelos seus objetivos econômicos e éticos, se tornara um entrave para o progresso econômico, a máxima "laissez faire" desencadeou forças econômicas imprevistas.

Ao passo que as corporações proibiam a iniciativa pessoal e as ideias progressivas, o industrial do princípio do século XIX dispunha da possibilidade de determinar o "como", o "quê", o "onde", o "quanto" e o "para onde" da sua produção. A livre iniciativa igual para todos deu lugar à concorrência e ao mercado, que se tornou o ponto de intersecção de todos os interesses econômicos, onde através do preço do mercado, resultante da oferta e da procura, se controlava a produção e o consumo, para bem de todos. Nas últimas décadas do século XIX assinalaram-se progressivamente certos fenômenos, que por um lado impediram a eficácia da economia de mercado e por outro provocaram grandes perturbações sociais e políticas. As forças intrínsecas da economia, mas sobretudo certas medidas tomadas pelo próprio Estado influenciaram o mecanismo da concorrência, pela formação de monopólios e outras situações de influencia dentro do mercado. O desenvolvimento da técnica moderna fomentou, por seu turno, novas tendências de monopolização, de modo que o equilíbrio das condições da concorrência foi por toda a parte gravemente prejudicado.³

Qualquer posição de monopólio ameaça prejudicar o consumidor e retardar, além disso, o progresso econômico. Os efeitos negativos das tendências monopolizadoras foram tanto mais sensíveis quanto mais modestas eram as economias nacionais e quanto mais estas se isolaram do mercado mundial livre por meio de medidas protecionistas, ou quando, para proteger esse isolamento, se fomentaram conscientemente monopólios econômicos privados através de medidas político-econômicas.

Todos devem participar do êxito.

O eixo em que assenta esta minha concepção de cartel é minha convicção de que somente por meio a concorrência livre se pode ativamente conseguir que qualquer progresso econômico e melhoramento de condições de trabalho se converta, não em lucros ou rendimentos maiores, mas vá beneficiar o consumidor. O sentidos social da economia de mercado reside no fato de que todo e qualquer existo econômico, toda e qualquer vantagem proveniente da racionalização, todo aumento de produtividade vir a traduzir-se no bem estar de todo o povo e a satisfazer melhor o consumo. A economia de mercado implica portanto um sistema de livre concorrência e por isso mesmo também não pode funcionar sem o preço livre. Todo aquele que pretender desligá-la da função do livre preço - seja por imposição estatal, seja por meio de cartelização - sufoca a concorrência e provoca estagnação da economia.

Numa atitude coerente com esta maneira de pensar, considerei que a minha primeira e mais importante tarefa, desde o dia da reforma da moeda, era limitar o mesmo e eliminar as múltiplas intervenções do Estado na formação dos preços. Toda a gente sabe desde essa altura que assentei a minha política econômica no princípio da liberdade e da iniciativa, por que um sistema só pode ser verdadeiramente orgânico e harmônico entro de um mercado livre onde reina a livre concorrência de produtos e a livre formação de preços.

Assim como recuso-me terminantemente a aceitar qualquer espécie de dirigismo burocrático ou economia comandada pelo Estado, também estou firmemente decidido a opôr-me a outras formas de influência econômica coletiva. Entre dirigismo estatal e patronal não existe qualquer diferença, nem de princípios, nem de funções. Se queremos um sistema econômico e social livre, não podemos conceder a ninguém nem a nenhum grupo o direito de interpretar a liberdade a seu bel-prazer para a poder limitar. [...] Para mim, liberdade é um todo indivisível, e liberdade política, liberdade econômica e liberdade humana formam uma unidade complexa. Não é possível arrancar-lhe um pedaço sem provocar a destruição do todo.

-
¹ Excerto do livro "Bem-Estar para Todos" de Ludwig Erhard publicado em 1963  pela editora Livros de Portugal S/A no Rio de Janeiro.
² Ludwig Erhard -  Ministro da Economia alemã entre 1948 e 1962, chanceler da Alemanha entre 1963 e 1966 pela União Democrata-Cristã. Implementou o pensamento ordoliberal na Alemanha e conduziu sua nação ao "deutsche wirtschaftswunder" (milagre econômico alemão).
³ Erhard refere-se ao fato de que vários industriais do início de século XX, a conseguir seus monopólios pela eficiência própria, temendo que o relaxamento provocado pela condição de monopolista sem concorrência favorecesse o aparecimento de novos concorrentes que pudessem lhes tirar esta condição prestígio, recorriam, então, ao Estado pedindo proteção contra novos competidores. A proposta de Erhard é tornar o estado hostil a este tipo de empreendedor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário