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segunda-feira, 6 de julho de 2015

MacIntyre e a ética das virtudes: uma adaptação política.


Alasdair MacIntyre é um dos vários pensadores da Democracia Cristã, e foi nele que baseei a crítica ao individualismo liberal nestes dois textos (1, 2). MacIntyre é famoso por sua crítica devastadora a John Rawls no livro "After Virtue". Mas aqui gostaria de chamar a atenção para o seu segundo livro: "Justiça de Quem? Qual Racionalidade?" onde ele questiona uma vez mais a ética autista do liberalismo e propõe o comunitarismo baseado numa ética das virtudes.

Alasdair não trabalha com a palavra tradição no sentido empregado pelos perenialistas como significativo de religião. Ele se refere no sentido filosófico, isto é, de uma tradição filosófica que pode ser religiosa ou não. Neste sentido ele aponta que o indivíduo autônomo e independente do liberalismo, totalmente responsável de suas ações em toda a sua existência não existe na realidade. Todo ser humano está inserido numa cultura e quer ele goste disso ou não; e ela influencia no modo que ele pensa e age, quer ele goste disso ou não. Embora os racionalistas invencíveis do liberalismo, crentes no homo economicus, relutem e lutem contra isso, qualquer pessoa que se dê ao trabalho de investigar minimamente esta afirmativa, perceberá que ela é verdadeira. Sugiro nesse sentido o excelente livro do psicólogo e jornalista David Mcraney: "Você não é tão esperto quanto você pensa: 48 maneiras de se auto-iludir" publicado pela editora LeYa.

E é por isso que pensar a ética com base na tradição é tão fundamental, pois é pensar o sujeito humano mais próximo possível da realidade. E por estarmos envoltos numa tradição, num ambiente cultural, numa ideologia ou numa cosmovisão, significa que nossa percepção do mundo é minimamente alterada por um conjunto de ideias e valores que nos transcendem no tempo e que não foram criados por nós. E pior! Nós as abstraímos muito antes de termos idade de consentimento ou de refletir sobre elas. Qualquer dúvida a respeito, recomendo o trabalho dos psicólogos Jean Piaget, Reuven Feuerstein e também do neurocientista Stanislas Dehaene. Essa certa "deformação cultural" não impede o conhecimento objetivo da realidade, mas prejudica em alguns casos sua observação.

Por se tratar de uma tradição, logo estamos falando de interações sociais e construtos culturais que são parcialmente ontológicos e parcialmente convencionais e ideológicos. Ora, há aspectos socioculturais que são universais mesmo para povos que nunca tiveram contatos uns com os outros, e que são hoje, como visto pela psicologia evolutiva como imposições biológicas da própria natureza. Ou seja, são resultados ontológicos de nossa própria natureza. O casamento por exemplo, ou a família. São traços universais. Esses traços aparecem das mais variadas formas nas diferentes culturas, mas sempre aparecem. Por exemplo: Todos nós conhecemos os ritos de passagem antigos. No judaísmo há o Bar Mitzva, em sociedades tribais há várias outras formas, como jovens indo fazer sua própria caça, ou moças que em algumas culturas da África subsaariana tinham que ter certa experiência como meretrizes para passar da vida infantil para a adulta, enfim... Esses ritos surgem devido a necessidade de prover proteção e trabalho para a sobrevivência da espécie humana, pois em algum momento é necessário definir quando um indivíduo está pronto a assumir seu papel social. Nós provavelmente conhecemos essa mesma forma no ocidente sob a fachada do "baile de debutantes", onde jovens de 15 anos são apresentadas para a sociedade como mulheres.

Todo construto cultural nunca é de um ser humano isolado, mas sim resultado da interação entre inúmeros indivíduos que constroem sem perceber um universo de significados e significantes e os repassa adiante ao longo de gerações. Então, não é possível falar de ser humano e ao mesmo tempo se ignorar sua posição social - posição social aqui não significa apenas posição socioeconômica - pois é a partir dela que o ser humano começa a abstrair as informações iniciais sobre as quais levantará seu arcabouço de conhecimentos, opiniões e impressões sobre o mundo.

Alasdair MacIntyre
Voltando a MacIntyre, é forçoso notar que quando ele propõem uma ética das virtudes é justamente pensando neste meio social, nós como seres humanos não estamos sozinhos e para alcançarmos qualquer objetivo maior precisamos e somos impelidos de certa forma a lidar com nosso próximo. Assim, para o filósofo escocês, o correto é pensar o indivíduo humano não como um universo totalmente autônomo e racional de vontades e opiniões independentes, mas sim pensar o ser humano em função de suas relações sociais. O primeiro horizonte de contato social que um ser humano tem é com a sua família, e na sequência com sua comunidade (bairro, rua, cidade, etc.). Então, devemos pensar nesse leque de relacionamentos quando pensamos nos seres humanos.

Ora, qualquer pessoa sabe que os relacionamentos humanos possuem características valorativas. Existem bons relacionamentos e maus relacionamentos. Logo, partimos para a esfera dos valores. O neotomista escocês percebe que na antiguidade clássica isto é perfeitamente observável. Quando Platão ao descrever Sócrates n'A República trata da temática Pólis ideal, o centro da discussão é a justiça. Ora, para Platão a sociedade ideal era aquela em que os homens tendiam a justiça, a busca dessa virtude era o norte e essa virtude era sacramentada nas leis da Pólis, desde o rei-filósofo passando pela educação até o mais humilde dos cidadãos. Aristóteles, o estagirita, por sua vez foi mais longe e complementou em Ética a Nicômaco que cada função social possui sua virtude. Qual seria afinal a função do bom tocador de flautas se não tocar flauta bem? Assim, o bom legislador é aquele que faz leis boas e o bom cidadão é aquele que cumpre as boas leis. Outro grande democrata cristão que é Gustavo Corção pensava igualmente em relação ao sentimento patriótico. O patriota não é o homem que vive de ostentar símbolos, brasões e bandeiras nacionais, que canta o hino com emoção. Não. O verdadeiro patriota é aquele que engrandece sua pátria e o bom patriota é o que faz dela um lugar melhor para se viver.

Essa preocupação decorre de que sendo virtuosos e procurando a virtude naturalmente as relações sociais da pólis tenderão a virtude. Assim, pois, a ética das virtudes é aquela que as relações sociais devem buscar relações que façam não apenas o bem para si, mas também para o próximo. Eis uma das razões de porque o libertarianismo (como o suprassumo da evolução do pensamento liberal) soa tão aterrador para um democrata cristão ao advogar como normal que um pai não seja punido por deixar um filho ainda bebê morrer de fome por simples uso de sua liberdade individual.

Mas o que é virtude? Isso dependerá obviamente da base cultural em que se assenta determinado grupamento social. Basta lembrar que Platão e Aristóteles viam como naturais a escravidão, ao passo que hoje o homem moderno a vê com olhos de abominação. MacIntyre é também um hegeliano e ele acredita que novas tradições filosóficas sempre surgem para complementar os erros das outras (embora nem sempre sejam bem sucedidas nisso). Com isso, ele ao explorar uma certa noção de tese-antítese-síntese vê com bons olhos quando uma tradição diferente é bem sucedida em resolver um problema da antiga sem destruí-la e, ao contrário, aceita-a como parte de si. Um exemplo maravilhoso dado por ele no livro "Justiça de quem? Qual racionalidade?" é o de Tomás de Aquino.

A liberdade guiando o povo - Delacroix: Símbolo do iluminismo.
São Tomás de Aquino toma uma tradição cristã moldada no platonismo através de Santo Agostinho de Hipona (que havia feito a mesma coisa que ele no passado) e tenta adaptá-la e encaixá-la num raciocínio Aristotélico. E assim ele o faz com maestria. O iluminismo traz consigo duas tradições liberais que se chocariam. O iluminismo escocês, sem problemas em olhar para o passado e as tradições e o iluminismo francês ressentido com tudo o que lhe antecedeu. Ambos surgem como uma nova tradição, mas um deles recusa-se a olhar para as outras e se misturar com ela nessa relação dialética, convertendo-se numa tradição anti-tradicional. O iluminismo francês, odiento quanto ao seu legado vence o iluminismo escocês e se espalha pelo mundo, ao passo que este último quando não apenas regionalizado, vê-se cada vez mais corrompido pelo vencedor, como vimos num dos textos acima "linkados". O Estado Americano nada tem a ver com o iluminismo escocês, ao contrário, ele é o retrato mais moderno do iluminismo francês baseado no individualismo e no progressismo. O iluminismo francês ao negar-se olhar para o passado e aprender algo com ele procura olhar para o vazio irrealizado do futuro.

Assim, parafraseando MacIntyre (1991, p.184):
Na controvérsia entre tradições opostas, a dificuldade de se passar do primeiro estágio para o segundo é que é necessário um raro dom de empatia, bem como intuição intelectual, para que os protagonistas de uma tradição sejam capazes de compreender as teses, argumentações e conceitos de outra, de modo tal que consigam ver a si próprios a partir de outro ponto de vista e de voltar a caracterizar suas crenças de maneira apropriada, a partir da perspectiva da tradição oposta.
Os teóricos do iluminismo francês, ao contrário do que diz MacIntyre quando não tomavam influências das tradições que lhe antecederam sem lhes dar os devidos créditos, demonizaram completamente o período que lhe antecedeu. Todas as acusações dos iluministas franceses a Igreja Católica como retrógrada, anticientífica, e à Idade Média como a Idade das Trevas e do obscurantismo caracterizam-se como exemplo perfeito dessa mentalidade. Assim, partindo de uma reflexão sobre o Estado americano e levado em consideração o que vimos nesse textos e nos dois anteriores acima marcados, podemos começar a pensar uma tradição política onde um Estado pautado pela ética das virtudes poderia existir. Este Estado deveria ter em suas instituições políticas não só o respeito pelo passado e a disponibilidade de aprender com ele, mas também leis que estimulem a busca das virtudes que caracterizam convivência social sadia e isso implica em abrir mão do universal-abstrato de direitos chamado "indivíduo". Ou seja o centro do direito não deve mais ser apenas o indivíduo mas também a pólis, mas não num sentido "escandinavo" de uma grande comunidade secular sempre olhando para o futuro não preenchido, e sim para o passado e para as tradições que nos antecederam e que Arnold Toynbee muito bem liga ao legado religioso que funda toda e qualquer civilização. Num Estado confessional como são alguns estados mundo afora, encaixar a noção agostiniana da Civitas Dei é mais fácil, onde se pode estimular com mais naturalidade uma vida pautada na conduta do bom cristão, o santo. Mas num Estado laico essa situação é muito mais difícil, pois este como mostra Olavo de Carvalho em "O Jardim das Aflições" é uma enorme máquina de secularização em massa.

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MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?. São Paulo: Edições Loyola, 1991.

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